Depois de preparado o teatro da intervenção, deitei dois dedos de whiskey velho num copo de balão e bebi-o de um trago só, sem o saborear devidamente. A bebida cumpriu a sua função, deu-me a coragem necessária para continuar.
Limpei a superfície com álcool etílico. Com a mão firme e a precisão cirúrgica que a tarefa implicava, segurei o bisturi no ar, afundei-o até ao local escolhido e comecei a cortar. Primeiro a pele, de seguida o músculo, as veias, os tendões, tudo até chegar ao osso. Terminada a tarefa, pousei o bisturi e olhei para o tabuleiro colocado em cima da mesa. Escolhi um cutelo bem afiado, segurei-o com firmeza, levantei-o bem alto e com rapidez, sem qualquer reflexão, apliquei um golpe seco sobre o osso, golpe que separou o membro ferido do corpo que aos poucos se preparava para matar. Estava cumprida a tarefa. Tinha sido eliminado o pedaço de carne podre. O ser que o carregava poderia encher-se de novo de vida.
Com todo o rigor, cauterizei as veias, cozi a carne e apliquei-lhe os unguentos mágicos que se vendem na farmácia, para garantir que a ferida cicatrizaria devidamente.
Antes de sentir firmeza na cura, comprei uma prótese. O corpo teria que habituar-se a ela. Aos poucos fui obrigando a que a experimentasse, uns minutos, umas horas, uns dias, até que a mesma se tornou parte de si. Ao fim de alguns meses, a situação estava regularizada. O corpo tinha recuperado a saúde habitual, a prótese funcionava às mil maravilhas na substituição do membro, tudo era perfeito. Bem, tudo não. Havia ainda aquela dor intermitente que se instalara no lugar do membro cortado. Dor que quando dava acordo de si, nenhum analgésico era capaz de abrandar. Dor cujo desaparecimento não se vislumbra. Dor que a vai acompanhar até ao fim dos seus dias. Dor que a ciência apelida “do membro fantasma”.
é o preço que se paga pela recusa da lobotomia. dizem que passa com o tempo mas começo a desconfiar que só passa quando o tempo trouxer o alzheimer. :)
ResponderEliminarBrilhante essa receita "dexteriana"!
ResponderEliminarUm membro ausente comportando-se similarmente a um membro real.
ResponderEliminarUma dor que permanece apesar da passagem do tempo.
Adocicamos a alma amputando lugares, amputando comportamentos, e ela, tantas vezes, faz-se desentendida espreitando e acenando . A Alma quando dói, é difícil torná-la dócil.
Bom Ano 2011
.)