domingo, 29 de abril de 2012

Fim de semana grande

Os primeiros planos tinham Barcelona como pano de fundo. Quatro dias e três noites de Gaudi e Ramblas e Montjuic e Mirós e Picassos. Seria um duplo baptismo, nos voos dentro das carreiras aéreos e no companheiro de viagem. Mas um pedido irrecusável, que introduziu um dia de trabalho entre os dois domingos, frustrou os intentos e obrigou a que fosse delineada uma alternativa que coubessse em duas noites. O melhor que me conseguiram vender foi um programa de Spa, com a montanha como cenário. A minha primeira reacção foi de rejeição. Lá tenho paciência para essas coisas de andar de roupão a passear-me entre duches e cubas e massagens e piscinas dinâmicas e saunas e turcos e lálálá. Mas depois, num golpe baixo, aliciaram-me com a perspectiva da montanha e do silêncio e do tempo para ler sem pressas e da beleza que pede para ser fotografada. Acedi, e como recompensa tive direito a tudo o que me prometeram. Percorri a montanha e escutei o silêncio que nela se encerra, li tudo o que levei comigo e dois extras que surgiram de surpresa, fotografei toda a harmonia que me rodeava uma e outra e outra vez, e recordei que em tempos, naquela mesma montanha os flocos de neve que rodopiavam enquanto caiam do céu, gravaram-me na pele a certeza de que a cumplicidade de se partilhar algo que cresce dentro de nós, jamais permitirá que a vida seja vivida de forma igual.

(Mantenho a minha posição no que se refere aos spa's. Salvaguardo no entanto a Céu, que me convenceu que não há nada melhor no mundo que as suas mãos. Mas isso será tema para outro post.)

O paraíso naquela esquina













sexta-feira, 27 de abril de 2012

Para todos

O desafio é lançado e ela agarra-o de imediato. Com afinco, prepara-se para que nenhum pormenor lhe escape. Lê normativos, consulta decretos-lei, contacta com os interlocutores envolvidos. Até que finalmente chega o dia. Entra na sala que lhe foi atribuída e verifica que está cheia de homens. São catorze no total e todos olham para o seu aspecto franzino com os olhos da desconfiança. O lugar é mínimo e a testosterona ocupa todos os ínfimos espaços existentes entre as moléculas do oxigénio que rapidamente começa a rarear. Ela observa-os, parando o olhar em cada um demoradamente, e depois de terminado o reconhecimento apresenta-se em português e explica-lhes ao que vêm. Observa-os de novo e tenta perceber nos seus rostos sinais de que compreenderam o que disse. Como não encontra qualquer indício que o confirme, decide questioná-los directamente. Obtém apenas uma ou duas respostas. Volta a questioná-los, desta vez em inglês. Há mais alguns que lhe respondem. Depois em francês, com o mesmo sucesso e finalmente em russo cobrindo todos os presentes. Conduz o resto da reunião intercalando as quatro línguas, garantindo assim que se faz entender com iranianos, cazaquis, moldavos, senegaleses, ucranianos, búlgaros, húngaros, marroquinos e indianos. Aos poucos, os semblantes carregados vão dando lugar a esboços de sorrisos e os silêncios a relatos de vidas. Em duas semanas repete a dose quatro vezes sempre com interlocutores e histórias diferentes, mas com o mesmo sucesso. Concluída a tarefa, sentindo o cansaço do dever cumprido a escorrer-lhe pelos poros, entrega-os a quem lhes pode dar acesso à língua do país que os acolhe e dirige os seus esforços noutras direcções. Hoje, numa acção de acompanhamento, entra no espaço que ocupam e após saudá-los, eles respondem-lhe em uníssono, exibindo largos sorrisos, numa cacofonia de acentos "Boa tarde". Sorri-lhes de volta, faz duas ou três perguntas e despede-se. Mais uma vez, a uma única voz, e armados de orgulho, articulam um "Até logo".  Ela sai e enquanto percorre o roseiral que a separa do seu espaço, pensa que continua a ser aquilo que os outros rejeitam, aquilo que evitam, o que realmente a faz feliz.

sábado, 21 de abril de 2012

Homens que dissertam sobre homens

"Somos nós - nós os homens - que ficamos assustados, nervosos, que cometemos erros; se às vezes nos armamos em cépticos ou em dominadores é porque desconfiamos de que estamos errados de qualquer maneira profunda e incalculável, o que não acontece com as mulheres. Os papéis que representamos já não convencem ninguém, os nossos vícios e hábitos dão ridículos e quando chegamos às portas do céu a enorme mulher negra que as guarda rirá de nós, não só porque não somos inocentes, mas porque não fazemos ideia daquilo que é de facto importante."

Michael Cunningham - Ao cair da noite. pp.84

quarta-feira, 18 de abril de 2012

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Está quase!

Se ficaram de boca aberta quando ela, apenas com duas palavras e muita ousadia, o fez sair da toca para, num acto inédito, lhe satisfazer um pequeno desejo, nem quer imaginar como ficarão quando ele voltar a dirigir-se a ela ignorando o costumeiro e impessoal tratamento profissional, para a tratar carinhosamente pelo diminutivo do primeiro nome.

sábado, 7 de abril de 2012

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Havia necessidade?

Entram a gritar com o mundo e comigo, como se o ruído que fazem resolvesse a precariedade instalada. Depois de permitir um ou dois minutos de algazarra, com alguma paciência, apresento os meus argumentos, numa tentativa habitualmente vã de que me escutem em sossego. Continuam a vociferar impropérios da mais diversa ordem. Ainda em voz baixa, que a minha voz aguda soa como um cacarejo quando a elevo, incito-os a que baixem o tom de voz, habitualmente sem sucesso. Repito a sugestão, desta vez de forma um pouco mais impositiva, acrescentando com a expressão facial mais neutra que me assiste, que não gosto que me gritem, pelo que só continuaremos a conversa se falarem baixo. O espanto causado por tal atrevimento cala-os e permite-me apresentar os argumentos que confirmam sempre que a razão está do meu lado. Já em sossego, e enquanto exponho as alternativas que têm à disposição, vão acenando com a cabeça em sinal afirmativo, mostrando-se na disposição de pôr em prática qualquer sugestão que lhes seja dada. Quando dou por terminada a interacção, agradecem e abandonam o espaço despedindo-se com toda a amabilidade e sussurrando um "Até breve!". São homens que não sabem senão mandar. São homens que se despem de todo o autoritarismo, e se deixam cobrir com o manto da submissão, sempre que encontram uma mulher que não se deixa dominar.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

domingo, 1 de abril de 2012

Não sei dizer adeus.

Não se atrevem a declara-lo, mas dirigem-me o olhar e o silêncio como se fosse um dedo em riste, apontado ao meu egoísmo, tentando obrigar-me a mudar o sentido da minha vontade. Não compreendem porque me recuso a agir ou reagir se, afinal, poderá ser esta a ultima oportunidade de o fazer. Não sabem que depois de tudo se esvair, são as memórias o que perdura, e que as estas são demasiado poderosas. Não compreendem porque declino a oportunidade de um recordação final. Não me dou ao trabalho de lhes responder que prefiro preservar a melhor que tenho, aquela que, com toda a certeza, será a que ele quer ver guardada.