segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Nem tudo o que reluz é de ouro

Há muito tempo que querias. Não sabes bem porquê, mas querias e querias muito. Procuravas, insinuavas o teu querer, entristecias-te com o silêncio que tinhas como resposta. Desististe. Não de querer, mas de ruidosamente mostrar que existias. Abandonaste-te ao silêncio do resignado, sentada com a cabeça apoiada na mão esquerda, à espera sem esperança.  
Um dia sem aviso, quando tu já quase tinhas desistido até de querer, ouves um ruído e vês que o esperado acaba de te cair no colo. A memória reaviva-se. Recordas-te de todas as penas por que te fizeste passar e abraças a sua chegada com toda a tua força. Na euforia do momento não sentes que os braços se vão soltando aos poucos, que o abraço se está a tornar lasso e que nada fazes para o voltar a apertar. Pensas que é um reflexo, mas não imaginas que é condicionado. Até que sentes que o sorriso começa a esmorecer nos teus lábios e que as tuas pernas querem caminhar para longe. Sentes vontade de fugir. Necessitas de te afastar o mais possível. Sentes-te a sufocar. Pensas que morres se não escapares. 
Sem aviso, tal como chegou, percebes que se prepara para de novo partir. Nada fazes para o deter. Tentas esboçar um sorriso para a despedida, mas apenas consegues um esgar. Acenas e respiras fundo assim que o vês dobrar a última esquina. 
Descobriste, tarde demais, que agora que se prepara para ser teu, afinal já não o queres.

sábado, 27 de agosto de 2011

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Leitura de praia III


Há mar e mar...

"Desde a mais negra antiguidade que as mulheres dizem essas palavras a marinheiros de todos os mares, em portos de todos os tamanhos; palavras de aceitação dócil da autoridade do horizonte, de homenagem cega a essa misteriosa fronteira azul; palavras que nunca deixam de conferir, mesmo à mulher mais orgulhosa, a tristeza, as esperanças e o desejo de liberdade da prostituta: "É amanhã que te vais embora, não é?""

O marinheiro que perdeu as graças do mar. Yukio Mishima, pp. 73

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

sábado, 13 de agosto de 2011

Memória olfativa


Em véspera de aniversário retoma a arte da pastelaria, que tinha colocado em suspenso por falta de público. Após 15 minutos de forno, as bolachas de azeite e canela começam a soltar um odor perturbante que evoca pequenos-almoços de pão fresco e manhãs de trabalho com um sorriso nos lábios. Esta fornada não será nomeada preferida ou sequer elogiada com beijos, esta fornada será somente mais uma peça na memória fragmentada pela tempo e pela distância.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Às vezes é preciso crescer para desfrutar.

"Mas havia mais uma coisa: um livro aberto em cima da mesa. Nunca ninguém abrira um livro numa mesa daquele café. Para Tereza, o livro era o santo e a senha de uma irmandade secreta. Para enfrentar o mundo grosseiro que a rodeava não tinha, com efeito, senão uma arma: os livros que ia buscar à biblioteca municipal e que eram sobretudo romances; lia-os aos montes, de Fielding a Thomas Mann. Davam-lhe uma oportunidade de evasão imaginária, arrancando-a a uma vida que não lhe oferecia satisfação de espécie nenhuma, mas, enquanto simples objectos, também tinham um sentido. Gostava de andar na rua com livros debaixo do braço. Eram para ela o que a bengala era para os dandies do século passado. Distinguiam-na dos outros."

A insustentável leveza do ser. Milan Kundera, pp. 52.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Olha,

hoje é dia de aniversário e eu quase não dava conta.

O impensável pode estar na próxima esquina

O dia começou com uma série de indícios que não prenunciavam nada de bom. O despertador tocou demasiado alto, deixando no ar um eco que se propagou pelos tímpanos e pelas conexões neuronais. A memória da contrariedade da tarde do dia anterior era visível nas protuberâncias que tinham eclodido e e que teimavam em manter-se abaixo dos olhos. O sorriso ensonado, mas pronto a fazer qualquer diabrura, que habitualmente a faz despertar, estava a alguns quilómetros e o acto falhado de colocar duas chávenas na mesa do pequeno almoço tornou consciente a dimensão da sua ausência.
Preparou-se sem qualquer cuidado para mais um dia de trabalho. Vestiu a primeira coisa que encontrou, calçou os sapatos que estavam fora do armário e saiu de casa, sem sequer se lembrar de espalhar creme hidratante no rosto, ou de aspergir para o pescoço algumas gotas do perfume que usa há anos e sem o qual se sente incompleta, uma vez que já se tornou num elemento da sua identidade. Saiu para a rua e conduziu até ao destino em modo "não se metam comigo hoje".
Assim que chegou ao local de trabalho, e após tomar o café que habitualmente amacia com duas gotas de leite e adoça com um pacote de açúcar inteiro, enclausurou-se no espaço que lhe está destinado e esperou quieta que o telefone desse início ao tormento da desmotivação que tem sido uma constante nas ultimas semanas. Não foi necessário esperar muito para que lhe anunciassem a primeira marcação do dia. Fez questão, como é seu hábito, de não fazer esperar o individuo e deu ordem para que o fizessem entrar de imediato.
O homem que lhe apareceu à frente tinha um ar franzino, de tão baixo e magro, um semblante triste e um rosto que carregava bem mais anos do que os que o cartão de cidadão indicava. Antes ainda de lhe perguntar o que quer que fosse, ele disparou que estava ali porque queria aprender a ler e escrever, que a vida tinha sido difícil e que abandonara a escola na terceira classe porque tivera necessidade de trabalhar, que o que tinha aprendido na escola já tinha sido esquecido ao longo dos anos e que agora, que tinha mais tempo livre, queria ser uma pessoa normal, e repetiu que queria aprender a ler e a escrever. Apanhou-a desprevenida, tal foi a convicção com que o disse. Deixou-a entusiasmada, tal foi a vontade com que se expressou. Ela com o zelo que lhe é habitual, colocou-lhe todas as questões essenciais à compreensão do problema, explicou-lhe com todos os preceitos o procedimento a realizar, deu-lhe instruções precisas acerca das diligências a tomar e assegurou-se de que ele tinha compreendido tudo o que fora verbalizado. Sem mais assuntos a tratar, ela deu por terminada a interacção, marcando um novo encontro para avaliar a evolução do processo. Quando se despediram, ele agradeceu-lhe genuinamente pelo que ela tinha feito por ele e quase sorriu. Ela disse-lhe um "não tem nada que agradecer", e repetiu  "não tem mesmo nada que agradecer", em tom mais baixo, tentando esconder a vergonha que a hipocrisia lhe estava a causar, tentando esconder o embaraço de não ter sido capaz de lhe agradecer a ele, por lhe ter voltado a ensinar a razão porque está ali, por lhe ter dado ânimo para continuar a percorrer os caminhos árduos da evangelização, por lhe ter renovado a confiança que os outros teimam em tentar abalar, por lhe ter aniquilado, logo cedo pela manhã, o potencial negativo do dia que começava, por lhe ter feito irromper um sorriso nos lábios, que ainda lá se mantêm à hora de deitar.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

A beleza também pode ser dolorosa

"O luar por cima das amendoeiras vizinhas era insuportável. Ficou um momento assim, de olhos semicerrados, enquanto, sem que soubesse explicar porquê, lhe vinha à ideia uma frase que ouvira, muitos anos antes, numa humilde tarde de Setembro, na longa fila de espera que se estendia frente ao armazém de milho da subprefeitura: "Parece que as raparigas da cidade beijam na boca...""

Abril despedaçado. Ismaïl Kadaré, pp. 143

O que nos mata as lágrimas torna-nos mais fortes

A vitela estava uma delícia. Apesar de requentada, conservava ainda o sabor do carinho que as mães põe em tudo o que fazem para os filhos e para os filhos dos filhos. As ervilhas estavam moles. Mas com as ervilhas congeladas nunca se consegue acertar no ponto certo de cozedura. A criopreservação confere-lhes uma textura excelente para puré, mas sofrível para legume inteiro. O vinho não era mau. Era branco, estava arrefecido o quanto baste e foi sendo bebido sem sacrifício ou particular prazer. O CSI Ray, aquele que já foi o Morpheus que dominava a origem, que já foi um Othelo mais que evidente, está em apuros. As provas não tinham sido todas processadas e o advogado de defesa apanhou-lhe uma lacuna no argumento. Eu não gosto de ver CSI's em dificuldade. Afinal, eles são os bons da fita, os que metem sempre os maus na cadeia. Bem, sempre sempre não, porque houve aquele episódio em que os maus ficaram em liberdade porque as provas não foram suficientes, ou porque alguém fez asneira. E esse foi um episódio marcante, porque pôs em causa a ordem natural das coisas e as pessoas não gostam que isso aconteça e portanto esse episódio vai ser para sempre lembrado. Se se aceitasse de ânimo leve que não há uma ordem natural das coisas e que o mundo gira na direcção que bem lhe apetece, tudo seria mais fácil. Mas não. A humanidade prefere idolatrar a ordem e abominar o caos. Talvez seja por isso que me sabe sempre tão bem brincar às escondidas e comer marshmallows assados e receber abraços com dois anos de atraso.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Lições de evolução

Fosse eu cardiologista
e haveria de inventar
uma máquina poderosa
para o coração consertar.

Ligava uns fios ao torax,
carregava numa tecla encarnada
e em dois ou três segundos
a ferida estava sarada.

Fazia um reset total,
formatava cada emoção.
O músculo voltava ao início,
ao momento prévio à desilusão.

Resolvia assim o problema,
aquele que teima em assombrar,
o medo de que tudo volte ao mesmo
o receio de se deixar encantar.

Ralham-me porque a rima é pobre,
a métrica está sempre a falhar,
e para juntar a tanta asneira,
ainda os ouço a clamar:

"Tens a anatomia trocada!"
Mas alguém se irá importar?
Afinal toda a literatura prega
que é com o peito que se deve amar.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

A vida dela é tão colorida #2

Após uma semana, e conforme ela tinha previsto, o silêncio é quebrado conforme descrito na cronologia seguinte:

10:30 - O telefone começa a vibrar. Ela olha o monitor e vê as letras escritas, sorri com ar trocista e continua a digitar números no teclado do PC, deixando o telefone a dançar sobre a  mesa.

11:45 - O telefone vibra de novo. Desta vez, com um movimento único, anuncia uma mensagem de texto. Ela toca no ecran e lê "Preciso de falar contigo. Liga-me!". Levanta-se da secretária e ignorando a ordem, dirige-se ao edifício principal para tirar duas fotocopias de que não necessita de imediato.

14:00 - O telefone vibra de novo. Ela pega-lhe com lentidão e atende com o seu habitual "Sim!". Denotando impaciência, ele barafusta inquirindo-a sobre o motivo da sua negligência; diz-lhe que necessitava com urgência de lhe colocar uma questão profissional. Ela, sem lhe dar qualquer explicação, pergunta-lhe qual é a pergunta. Ele mete os pés pelas mãos e responde-lhe que já  tinha resolvido. Ela fica em silêncio indiciando ter compreendido as suas intenções. Ele gagueja e pergunta-lhe se ela está ocupada à noite, se quer ir ao cinema. Ela responde que está sempre ocupada, mas que poderá acompanhá-lo.

14:05 - Ela desliga o telefone e dirige-se à internet para procurar no cinecartaz o filme mais chato em exibição. Antecipa-se uma noite de divertimento.

Estou abazurdida*!

Eu não percebo abosolutamente nada de política ou economia, mas parece-me que está ali um Ministro na televisão a dar tiros sucessivos em ambos os pés.

* (não existe? existe, existe e eu estava lá quando foi inventada.)