domingo, 29 de novembro de 2009

sábado, 28 de novembro de 2009

Mulher

Na adolescência eras uma rapariga contida. Olhavas-te ao espelho e abominavas a imagem reflectida. Vias um patinho feio, desprovido da esperança de se ver transformado em cisne. Observavas as outras raparigas á tua volta. Todas te pareciam mais belas, mais interessantes, com vivências mais aventurosas. Refugiavas-te na cognição. Era esse o teu trunfo. Era no conhecimento, nas capacidades de análise e de síntese, que te escondias. Era com elas que te defendias, que atacavas o mundo. Ocupavas o teu tempo, a tua consciência com leituras, escritas, exercícios de matemática, conjugações de verbos em línguas estrangeiras...
Os rapazes eram para ti um segredo, um mistério.
Estabelecias, com alguns, contactos visuais, mas não te deixavas ir mais além. O receio da recusa, não te permitia sair do perímetro de segurança que estabeleceras. A rejeição era o teu maior pesadelo. Por isso mantinhas-te à distância, impedias-te de arriscar.
Foste crescendo. Aos poucos, os rapazes, agora homens, começaram a olhar demoradamente para ti, a procurar a tua presença. Estranhavas. Não acreditavas. Pensavas que "esses" deveriam ter algum defeito grave. Mas eles não desistiam. E aos poucos, começaste a acreditar que te olhavam porque abanavas algo no seu mundo.
E então começaste a mudar. Há já algum tempo que a contenção não é a tua principal característica. Esquecida das inseguranças da adolescência, tornaste-te numa rapariga expansiva, capaz de exprimir desejos de uma forma assertiva. Andas na rua com as costas direitas, com o queixo levantado. O som dos teus saltos ecoa pelos locais onde circulas. És bonita, tens um corpo apetecível. Fazes virar cabeças quando passas. Vestes-te bem, de acordo com a moda. Conversas à vontade sobre qualquer tema. Mesmo quando não dominas o tópico da conversa, tens sempre uma tirada inteligente. Na maior parte das vezes, ninguém consegue perceber a tua ignorância. Tens sucesso. Um bom salário. Tudo em ti denota confiança, capacidade para vencer. Poderias ser alvo de uma reportagem numa dessas revistas para mulheres, como modelo de auto-estima promovida.
Um destes dias encontramo-nos. Tomamos um café num desses sítios onde só vai gente bonita.
Pareceste-me algo triste. Perguntei-te qual o motivo.
Confessaste-me, à mesa do café, que não tens tido "sorte" com os homens. Que és abordada com frequência. Alguns dos sujeitos até se revelam interessantes, aos teus olhos. Mas, no final do primeiro encontro, percebes que não irão voltar a ver-se. Por vezes, cruzas-te com algum, mais tarde. Invariavelmente está acompanhado por uma rapariga desinteressante e amorfa.
E perguntaste-me.
- O que tenho eu de mal?
E eu respondi-te.
- Olhas os homens de igual para igual. Podes competir com eles. Podes até vence-los. E isso é  algo que eles não conseguem ultrapassar, que temem mais que tudo. Metes-lhes medo.
E tu olhaste o horizonte. Sorriste. E secretamente amaldiçoaste todas as incendiárias de soutiens.

Renascimento




É noite.
A inquietude que me atravessa conduz-me, novamente, às escadas do jardim. Está frio. A noite traz consigo uma humidade que se entranha na pele. Contudo, este é o lugar onde, inexplicavelmente, me sinto aconchegada. É o meu porto de abrigo.
Olho em volta. Algo acabou de explodir dentro de mim. Encontro pedaços do meu ser espalhados por todo o lado, até ao horizonte. Em simultâneo vejo milhares de pontos de luz a iluminar a paisagem negra. Percebo, ao olhar em redor, que todas as referências familiares estão nos seus lugares. Nada à minha volta mudou. Levanto-me. Mentalmente apanho cada caco da minha existência. Junto-os no regaço. Começo a desfaze-los em areia. Moldo uma nova configuração. A pouco e pouco, a minha essência adquire nova forma. Invade-me uma sensação de serenidade. Sinto-me reconstruída, recriada, renascida. Pronta para recomeçar a viver.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Os dias

Há dias que são cheios de nada.
Hoje foi um dia cheio de muita coisa,
quase cheio de tudo.
São estes dias que guardamos na memória.
São estes dias que nos adormecem a sorrir.

domingo, 22 de novembro de 2009

Descobrimentos

Ontem, quase por um acaso, e dentro de uma ansiedade perfurada aqui e ali por um tédio sem fim, fiz uma descoberta. E essa descoberta, qual cereja de fim de verão, levou-me a outra descoberta e a outra e a outra. E cheguei ao fim do dia a sentir-me um Pedro Álvares Cabral da Internet, um Bartolomeu Dias da blogosfera.
E agora, sou uma descobridora, pejada de pequenas memórias doces. Ei-las.
Manhãs e manhãs e manhãs de alegria contagiante.
Uma personalidade genuína, cheia de encanto.
Músicas da minha infância.
Encontros furtivos em Festivais de Verão.
Tardes de loucura e televisão.
Um encontro. Uma troca breve de olhares. Algumas palavras provocatórias.
Uma mensagem.
Uma música a pedido.
Um belo rapaz.
Algo que em outras vidas poderia ter sido, mas nunca foi...

sábado, 21 de novembro de 2009

Amo-te

Amo-te não é apenas uma palavra difícil de dizer. É acima de tudo, uma palavra perigosa, capaz de originar verdadeiras catástrofes emocionais. Por isso, resolvi bani-la do meu vocabulário. Estou, aqui, hoje, a quebrar o exílio a que a confinei. Passo a explicar. Sou uma rapariga assertiva, que não tem medo de qualquer palavra. Quando sentia que estava na altura certa, não hesitava em dizer ao objecto do meu afecto “Amo-te”. Disse-o 4 vezes a quatro pessoas diferentes. E foi a desgraça.
O primeiro dos sujeitos, ficou branco como a cal, a primeira vez que a ouviu. Começou a gaguejar. Disse ser muito novo para essas coisas e acabou com o romance. Não valorizei. Afinal, o rapaz apenas tinha 15 anos, tal como eu. Pensei:
- Se calhar foi cedo demais.
Voltei a dizer amo-te, uma série de anos mais tarde. Tinha 20 anos. Namorava há 6 meses com um colega de faculdade. Um dia, enquanto víamos o pôr-do-sol, numa esplanada da Foz, disse-lhe carinhosamente: - Amo-te tanto. Ficou comovido. Com os olhos marejados de lágrimas. Respondeu-me que também me amava. Passados dois dias, apareceu-me com um anel de noivado. Já tinha tudo planeado. Iríamos casar daí a 3 meses. Viveríamos num anexo ao fundo da casa dos seus pais. Teríamos claro, que trabalhar a meio-tempo, deixando de dar prioridade à faculdade. Pouco a pouco fui-lhe mostrando que era um plano algo arriscado e que deveríamos ter alguma cautela. Entendeu-o como uma rejeição e acabou o namoro 15 dias depois. Obrigou-me a devolver-lhe o anel, com muita pena minha. Já me tinha afeiçoado.
A terceira pessoa a quem disse amo-te, entrou na minha vida por acidente. E quando digo por acidente, quero mesmo dizer que foi devido a um acidente. Pouco tempo depois de ter acabado o namoro com o senhor nº 2, tive um acidente de carro. O rapaz que conduzia o outro carro era lindíssimo. Foi um verdadeiro cavalheiro na condução das negociações face à participação às companhias de seguros. Trocamos contactos telefónicos. Resolvida a situação, telefonou-me e convidou-me para tomar um café. Acedi. Daí até começarmos a namorar, foi um passo rápido. Durante 3 meses vivemos dias de entendimento perfeito. Um dia, estávamos no cinema, e no meio de uma cena romântica disse-lhe em surdina, ao ouvido, a fatal palavra. Amo-te. Não me respondeu. Ficamos em silêncio o resto do filme. Em silêncio continuamos enquanto me levava a casa. Em silêncio nos despedimos. No dia seguinte recebi um e-mail, de conteúdo algo desagradável, no qual me chamava rapariga leviana. Ao que parece, o rapaz ficou zangado por considerar que não era aquele o local próprio para se dizer tal palavra. Acabou o namoro por e-mail e pediu-me que não mais o procurasse.
A última vez que  disse a trágica palavra, foi há muito pouco tempo. E desta vez, foi com um objectivo algo diabólico. Namorava com um rapaz há uns meses. Estava um bocado entediada e não via forma de me livrar do mesmo. O rapaz idolatrava-me cada poro da pele. Não me largava um só segundo. Sufocava-me com as suas atenções. Um dia, resolvi testar a hipótese que tinha desenvolvido já. A hipótese de que a palavra amo-te é catastrófica. Numa despedida ao final da noite lancei: –Amo-te. O pobre rapaz ficou tristíssimo. Não aceitava que tivesse sido eu a primeira a dizê-lo. Queria ter sido ele. Os sentimentos que tinha desenvolvido por mim eram de tal ordem, que procurava o conjunto de palavras certo para se declarar. Naquele momento eu tinha-lhe retirado tal oportunidade. Encetamos uma discussão acerca do assunto, que culminou com um: “-Assim não dá.”, da minha parte. Acabamos o namoro após 3 dias de reflexão.
Desde então, aboli a palavra amo-te do meu vocabulário. Não mais a usarei.
A versão te amo, em português do Brasil será uma experiência a considerar. Mas parece-me que o resultado será igualmente catastrófico.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Noite

Tudo no dia é dor. Tudo no dia, me dilacera os sentidos.
A claridade do céu pesa-me sobre os ombros,
A luz do sol incendeia-me as pupilas,
O verde dos plátanos fere-me a pele,
O bater de asas das gaivotas ensurdece-me.
Idolatro a coruja, que guarda a noite, que caça silenciosa.
Alimento-me do luar que esconde os seres clandestinos.
Encanto-me com as sombras alongadas, dos vultos furtivos
Enfeitiço-me com o silêncio majestoso da escuridão.
Quero parar a rotação da terra. Quero prolongar a noite.
Porque apenas a noite me traz à memória.
Tudo o que o dia teima em apagar.

Fantasmas

Os fantasmas que assombram as tuas noites impedem-me de dormir. Sinto-os a toda a hora na cama que partilhamos. Enfiam-se entre nós. Revolvem-te o corpo e a mente. Agitam-te o sono.
E eu não durmo, para poder velar o teu repouso, para te proteger dos males do passado.
E tu nem sequer queres ser protegido.
Perpetuas o teu sofrimento para te manteres vivo. Enalteces a tua dor, que dizes ser a maior de todas. Escarneces do pesar dos outros. Dizes que não é cotejavel com o teu.
Vais-me deixando ficar, mas manténs intacto o muro que criaste entre nós.  Não me deixas entrar na tua pele. Não me deixas invadir-te o conhecimento.
Escreves, falas, cantas.  Dás-me a ler as tuas cartas, serves-me as tuas palavras, fazes-me entoar as tuas canções. Mas nenhuma das tuas palavras é para mim. Não sou eu a tua musa.
Há dias em que me chamas para ti. Pareces querer fazer-me tua. Mas rapidamente voltas atrás. Rapidamente me esqueces. Sem aviso, refugias-te no passado. E eu fico sozinha. E percebo.
Não te faço falta. Não me queres. Nunca me quiseste. Jamais me quererás.
E eu não tenho coragem para partir.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Era... fora.

A vida posta em suspenso por milhares de segundos.
Um gesto pernicioso repetido até à exaustão.
O alheamento, de braços elevados.
Gritos amestrados de zombie .
Um quase esquecimento.
A repentina e dolorosa lembrança.
O pretérito imperfeito que se transforma, mais uma vez, em  mais-que-perfeito.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Quero...

...flutuar qual balão pleno de hélio, rumar à estratosfera, evadir-me do concreto, inebriar-me com o ar rarefeito das altitudes.
Quero inspirar o silêncio ensurdecedor do cosmos.

domingo, 15 de novembro de 2009

Amor

Antes de te conhecer a minha vida era cheia. Cheia de tarefas, actividades, amizades, romances, namoros, aventuras. Cheia de encontros e desencontros, de momentos de felicidade e de momentos de absoluta depressão. Repleta de amores e desamores.
Antes de ti, a minha vida corria sem horários ou compromissos, que não fossem para a satisfação dos meus caprichos. Era um mar de diversão, no qual cavalgavam breves ondas de seriedade e dever.
E num repente, quase sem aviso, numa manha de sol e calor, tu entraste na minha vida.
E tudo mudou nesse momento. A tua chegada a mim foi um reset sentimental. Conhecer-te fez rodopiar todos os sentimentos que pensava conhecer. E rodopiaram até cair, até desfalecer num chão de pedra, até perecer.
E então compreendi. Um sulco rasgou-se no contínuo da minha existência. Passou a haver o antes. Passou a haver o depois. Momentos distintos separados por ti, pela tua existência em mim.
E foste tu quem me apresentou o amor.
Até então pensava que amava. Acreditava piamente que amava. Dizia mesmo a palavra "amo-te", vezes sem conta, a diferentes interlocutores. Depois de ti, nunca mais a profanei com as minhas cordas vocais.
Nem para a dirigir a ti. Não poderia. Dizê-lo não seria suficiente para expressar o que me passa no hipotálamo (ou no coração, se preferires), quando és tu o objecto.
Deixei de viver para mim. A minha vida foi-te entregue, numa bandeja de prata, para dela usufruíres, para dela dispores. São os teus caprichos que procuro satisfazer com toda a diligência. É a tua felicidade que procuro, com todo o meu ser. Exagero? Não. A verdade é que apenas vivo para guardar a tua vida, e apenas sou feliz, através da tua felicidade.
Só amo, só te amo, porque me ensinaste o amor.
Vieste ao Mundo, para me ensinar o amor. O querer incondicional, sem reservas, sem limites, sem horários. O querer-te, mais do que alguma vez me quis a mim própria, mais do que poderei querer a qualquer outro ser. Nasceste para me mostrar que, antes de ti, não conhecia o amor. Nasceste para me mostrar que, por ti, não poderei desaprendê-lo.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

O Outono começa a transmutar-se em Inverno.

Caminho para casa. O vento em crescendo, uiva desafinadamente, balança os ramos das arvores transformando-as em hábeis bailarinas sincronizadas. As folhas multicores caem vagarosamente, rodopiando até afagar o chão. Quando pensam que poderão repousar, finalmente, o vento fá-las de novo rodar, desenfreadamente, sem ordem para parar.
Começa a chover. Pingos grossos de chuva ecoam na tela do guarda-chuva. O ceú negro anuncia tempestade. Urge atingir um porto abrigado, pisar terra firme.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Este lugar onde escrevo.

Sozinha. Acompanhada apenas por este lugar onde escrevo, medito sobre os sentimentos que provoco com as letras que junto em palavras e frases.
A reflexão foi despoletada por algo que me foi verbalizado hoje, e que embora eu não tenha verdadeiramente compreendido, não considerei elogioso. A referida elocução foi emitida por alguém que, até ao dia de hoje, sempre tinha elogiado a minha escrita. Alguém que sempe o tinha feito de uma forma altamente efusiva.
Por isso, qual não é o meu espanto, quando ouço da sua boca o seguinte "...aquelas bufarolices, que escreves no blog...". Ou terá sido "... aquelas bufardices que escreves no blog...". Não consigo reproduzir com toda a certeza. Poderão ter sido estas as palavras, ou poderão não ter sido estas as palavras.
Procurei no dicionário e não encontrei nem bufarolice, nem bufardice, nem qualquer outra palavra que se lhes assemelhasse. Deveria ter questionado a criatura em causa, acerca do signifcado de tais palavras. Não tive coragem. O tom do discurso era algo colérico, um pouco ameaçador até. Parece que se viu retratado num dos textos. Parece que não gostou.
De volta às minhas reflexões sobre as coisas que escrevo neste lugar.
Penso que, neste mundo,
há alguém que leva a sério o que escrevo;
há alguém que considera que o que escrevo poderá retratar a realidade;
há alguém que gosta do que escrevo, embora nem sempre;
há alguém que ficou incomodado com o conteudo de algo que escrevi;
há alguém que nutre sentimentos fortes relativamente ao que escrevo;
há alguém que ainda não percebeu que o centro do meu mundo sou eu;
há alguém que me julga pelo que escrevo;
há alguém que não me conhece;
há alguém que não se conhece;
há alguém que tem medo de viver;
há alguém que se engana, dia após dia;
há alguém que não vai gostar deste post;
há alguém que vai deixar de me falar.
Haverá alguém que em explique o que pode ser uma bufarolice? E uma bufardice?

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Incongruente

Dizes-te indisponivel para querer,
mas sem pudores, tentas abraçar o mundo.
Dizes-te amante do intrincado,
mas procuras um caminho linear, sem surpresas.
Dizes-te pastor do sentimento,
mas atacas a carne com toda a avidez.
Dizes-te opressor daquilo que tornaste teu,
mas és incapaz de agarrar o que conquistaste.
Dizes-te honesto,
mas camuflas a verdade com flores;
Dizes-te habitado, 
mas dás abrigo a qualquer viajante.
Dizes-te homem,
mas mostra-te criança em todos os teus actos.
És a acrópole da incongruência.
És o abismo da contradição.
És a jazida da incoerência.
Não. Não te cales. Expressa-te. Diz-te sempre. Mas diz-te verdadeiro, sem máscaras, sem efeitos especiais.

Viagem outonal


Acabei de entrar no comboio. Sentei-me à janela. Preparo o meu leitor de Mp3, o meu livro. Recosto-me confortavelmente. O comboio começou a andar.
A paisagem começa a desfiar. Circulamos ao longo do rio. O comboio viaja a velocidades díspares. Ora muito depressa, ora muito devagar. O céu negro, carregado de nuvens, corre com a composição, a uma velocidade inconstante. A sua negrura reflecte-se no rio. O rio é preto.
Ao longe, um grupo de garças brancas levanta vôo em unissono. A cor alva marca o céu, deixando um rasto de claridade. A sua beleza apaga a escuridão.
Afastamo-nos do rio. Deixamos, por completo, de o ver. A paisagem transformou-se num verde escuro. No verde esmorecido da folhagem que chama pelo Inverno. Um verde pintalgado de casas coloridas, ora aqui ora acolá.
Ao longe vê-se uma pequena igreja, toda pintada de branco. Isolada. Vazia. Sem fieis.
De repente, vindo do nada, aparece um castelo de pedra, construido no cimo de um monte. Angular, com torres simétricas e ameias recortadas no céu, traz-me à mente imagens medievias. Cavaleiros audazes, beligerantes, belas donzelas em aflição.
O comboio parou.
Avista-se, em cima de um outro monte, um cemitério esquecido. Escondido pela folhagem, um mausoléu sobressai imponente. Uma cripta cheia de memórias em forma de ossos. Aos pés do declive, um outro rio corre lentamente, espelhando o que se encontra à sua volta. Serve de tapete ao monte. Na margem, um pescador perturba a calmaria com a sua cana de pesca e a sua motorizada moderna.
O comboio retoma a marcha. Começa a circular a grande velocidade. A paisagem torna-se esborratada, esboroada. Verde, cinzenta. A velocidade diminui. Ao longe vislumbram-se pequenos vinhedos. Cultivados simetricamente. Linhas paralelas matizadas de verde, castanho, amarelo, vermelho. Cores em simbiose. Uma paleta de harmonia. Fecho os olhos. Imagino a cheiro das uvas maduras, da terra revolta, do vinho acabado de pisar.
Abro de novo os olhos. Vejo o mar. Também ele negro e branco. Negro na sua essência, branco na espuma das ondas que morrem na praia. Revoltoso, cheio de ímpeto. Suga tudo o que apanha, devolve os restos, o refugo. O mar é a proximidade de casa.
Daí a nada aparece a ponte. O ultimo obstáculo. Um vislumbre da mais bela cidade do meu Mundo. O casario em cascata. O ouro do rio. As cores do horizonte. Um raio de sol a pôr-se no mar.
Senhores passageiros, a viagem terminou. Invade-me a nostalgia da chegada a casa, ao porto de abrigo.

sábado, 7 de novembro de 2009

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Lavei-me, livrei-me.

Que horas são? Tão cedo. Ainda nem nasceu o sol.
Apetece-me dormir mais um bocadinho?
Não, não tenho sono. Não estou cansada. E se me levantasse...
Levanto-me da cama. Abandono os lencóis quentes, o conforto do edredão de penas e abro a janela. Sinto a ténue claridade do nascer do dia. Sinto o ar frio nas narinas, nas maçãs do rosto. Sinto o cheiro da chuva na terra seca. Sinto que chegou o Outono.
Aconteceu-me algo. Não consigo perceber o quê.
Olho à volta. Há algo diferente no ar.
Não sonhei durante a noite. Não estou cansada. Não me sinto melancólica. Tenho os sentidos alerta. Os meus ombros estão leves.
De repente apercebo-me. De repente caio em mim.
Adormeci a pensar em ti. Acordei a pensar em mim.
Lavei-me com as primeiras chuvas. Livrei-me dos teus sinais.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Caminhos cruzados

Ele regressou à civilização, sem aviso prévio. Em pezinhos de lã cruzou o horizonte dela.
Ela não o esperava. Não naquele espaço, não naquele tempo.
Ele fingiu que não a viu. Depois, quando finalmente cruzaram olhares, fingiu surpresa. Parecia que não era suposto ela estar ali, aquela hora, naquele local.
Sorriram-se. Trocaram acenos de cabeça.
Ele deu-se ares de pessoa importante, cheio de afazeres.
Ela fingiu que ele era pouco importante. Dirigiu-lhe um comentário banal.
Ele respondeu sem convicção.
Não se olharam mais. Não se falaram mais.
Ela ficou imóvel.
Ele foi-se embora. No ar, deixou o rasto do seu perfume. Na mente dela, uma série de dúvidas.
Ela quis perguntar. Não se atreveu. Desistiu.
Ele não iria responder. Não saberia o que lhe dizer. Já tinha desistido.
Cada um seguiu o seu caminho. Um dia voltarão a cruzar-se.