domingo, 23 de fevereiro de 2014

Quem escreve assim...

"Sophie não mentia; para as mulheres, só elas próprias têm importância, e qualquer outra escolha não passa, aos seus olhos, de uma loucura crónica ou de uma aberração passageira"

O golpe de misericórdia - Marguerite Yourcenar, p. 88

Madrugada

Discutíamos as cantoras portuguesas. Ele apaixonado, eu desencantada.
 
- Mas ela escreve as letras. Ouve bem. É muito boa.
- Queres que te escreva uma. É já.
- Então escreve.
- Já está. (só falta alguém que a queira cantar)
 
 
Madrugada
 
Numa noite estrelada
Lá no meio do nada
Um cometa passou
E o desejo voou:
“Aquela boca beijar
E o tempo parar,
Com um olhar apagar
Toda a luz que restou”
 
 
No sossego do escuro
A guitarra tocou
Num disco que riscou,
O vento sem acalmar
A pele eriçou,
O peito quase a estoirar,
Um sufoco na alma,
O mundo que era calma
Para sempre mudou
Numa noite estrelada
Em que o cometa passou.

Esse cheiro de mar, insistente no ar
Arrepia-me, dobra-me, faz-me sonhar
Um delírio eterno, faz o mundo a girar
Esse abraço, para sempre, quero guardar
 
E quando o vento gelou,
E a paixão esmoreceu
No meu corpo e no teu,
Eu fiquei acordada
À espera, sentada
Que um milagre de santa
Numa nuvem montada,
Te fizesse voltar.
 
Mas a santa falhou
E o regresso tardou.
A paixão pereceu
Mas a promessa de amor
Num acto de teimar
Nunca se esgotou.
Para sempre ficou
Agarrada à carne
Que num dia de sol
Deste corpo brotou
 
Esse cheiro de mar, insistente no ar
Arrepia-me, dobra-me, faz-me sonhar
O delírio secou, e o mundo parou
O abraço desfez-se, o silêncio ficou.
 

Vogar sem rumo

O propósito que nos levou à baixa foi a compra das socas que faltavam para completar o disfarce de carnaval. Nas lojas do Bolhão referenciadas não havia o número adequado e portanto tivemos que rumar à Rua dos Clérigos pedindo, pelo caminho, a todos os santinhos que nos evitassem uma viagem ao Minho. Os santos acudiram e a compra fez-se em cinco minutos. Tanta rapidez deixou-nos com excesso de tempo até à hora do almoço. Outro café, dizia ele, acompanhado do jornal. Uma subida à torre contrapus eu, salientando que não me parecia bem que já tivéssemos subido a todas as torres de Praga e continuássemos ambos sem conhecer a da nossa cidade. A custo convenci-o. Subimos. A meio do caminho amaldiçoei o esquecimento da camara fotográfica. O telemóvel teria que servir. Foi assim:






quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Na guerra, como no amor

"Os nossos homens não lhes ficavam certamente atrás em invenções, mas, no que me diz respeito, contentava-me a maior parte das vezes com a morte sem frases. A crueldade é um luxo de ociosos, tal como as drogas e as camisas de seda. Em matéria de amor, sou, também, partidário da perfeição simples."

O golpe de misericórdia - Marguerite Yourcenar, p. 34

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Porque é que deixas de ler blogs Maria?

Porque não suporto ler textos escritos por pessoas que até escrevem bem e que de repente, por obra de uma paragem cerebral qualquer que lhes dá, começam a escrever como se fossem crianças ou semi-analfabetos ou outra coisa qualquer que eu ainda não descobri.

(tufone, não só não é uma palavra, como não tem piada nenhuma quando aparece escrita no meio de um texto com qualidade )

Despojos nocturnos




Bom dia


Acordo quando a manhã está quase a findar-se. Não oiço os ruídos do vento ou da chuva e penso que, de tão costumeiros, foram silenciados pela cacofonia do dia-a-dia. Abro a janela, vejo o sol e compreendo a calmaria auditiva. Já me desabituei de acordar privada de sons. Pego no telefone e, com o pretexto de lhes averiguar o estado de saúde, ligo aos progenitores. Não atendem. Nunca me atendem à primeira. Percorro a lista e resolvo desta feita perguntar pela descendência. Mais uma vez silêncio do outro lado. A terceira tentativa, feita já em desespero, não tem um fim diferente das anteriores. Tanta quietude perturba-me. Ligo a televisão, coloco o leite no micro-ondas, faço um expresso na máquina de café. Encho a casa de ruídos artificiais, inorgânicos. Distraem-me, mas não me consolam. Assoma-me à mente a lembrança do velório em noite de S. Valentim. Interrogo-me se não será isto a morte: um estado de omissão, em que chamamos e ninguém nos responde.

Os telefones tocam, um logo a seguir ao outro. Abandono tudo e corro de volta à existência.

domingo, 9 de fevereiro de 2014