O dia começou com uma série de indícios que não prenunciavam nada de bom. O despertador tocou demasiado alto, deixando no ar um eco que se propagou pelos tímpanos e pelas conexões neuronais. A memória da contrariedade da tarde do dia anterior era visível nas protuberâncias que tinham eclodido e e que teimavam em manter-se abaixo dos olhos. O sorriso ensonado, mas pronto a fazer qualquer diabrura, que habitualmente a faz despertar, estava a alguns quilómetros e o acto falhado de colocar duas chávenas na mesa do pequeno almoço tornou consciente a dimensão da sua ausência.
Preparou-se sem qualquer cuidado para mais um dia de trabalho. Vestiu a primeira coisa que encontrou, calçou os sapatos que estavam fora do armário e saiu de casa, sem sequer se lembrar de espalhar creme hidratante no rosto, ou de aspergir para o pescoço algumas gotas do perfume que usa há anos e sem o qual se sente incompleta, uma vez que já se tornou num elemento da sua identidade. Saiu para a rua e conduziu até ao destino em modo "não se metam comigo hoje".
Assim que chegou ao local de trabalho, e após tomar o café que habitualmente amacia com duas gotas de leite e adoça com um pacote de açúcar inteiro, enclausurou-se no espaço que lhe está destinado e esperou quieta que o telefone desse início ao tormento da desmotivação que tem sido uma constante nas ultimas semanas. Não foi necessário esperar muito para que lhe anunciassem a primeira marcação do dia. Fez questão, como é seu hábito, de não fazer esperar o individuo e deu ordem para que o fizessem entrar de imediato.
O homem que lhe apareceu à frente tinha um ar franzino, de tão baixo e magro, um semblante triste e um rosto que carregava bem mais anos do que os que o cartão de cidadão indicava. Antes ainda de lhe perguntar o que quer que fosse, ele disparou que estava ali porque queria aprender a ler e escrever, que a vida tinha sido difícil e que abandonara a escola na terceira classe porque tivera necessidade de trabalhar, que o que tinha aprendido na escola já tinha sido esquecido ao longo dos anos e que agora, que tinha mais tempo livre, queria ser uma pessoa normal, e repetiu que queria aprender a ler e a escrever. Apanhou-a desprevenida, tal foi a convicção com que o disse. Deixou-a entusiasmada, tal foi a vontade com que se expressou. Ela com o zelo que lhe é habitual, colocou-lhe todas as questões essenciais à compreensão do problema, explicou-lhe com todos os preceitos o procedimento a realizar, deu-lhe instruções precisas acerca das diligências a tomar e assegurou-se de que ele tinha compreendido tudo o que fora verbalizado. Sem mais assuntos a tratar, ela deu por terminada a interacção, marcando um novo encontro para avaliar a evolução do processo. Quando se despediram, ele agradeceu-lhe genuinamente pelo que ela tinha feito por ele e quase sorriu. Ela disse-lhe um "não tem nada que agradecer", e repetiu "não tem mesmo nada que agradecer", em tom mais baixo, tentando esconder a vergonha que a hipocrisia lhe estava a causar, tentando esconder o embaraço de não ter sido capaz de lhe agradecer a ele, por lhe ter voltado a ensinar a razão porque está ali, por lhe ter dado ânimo para continuar a percorrer os caminhos árduos da evangelização, por lhe ter renovado a confiança que os outros teimam em tentar abalar, por lhe ter aniquilado, logo cedo pela manhã, o potencial negativo do dia que começava, por lhe ter feito irromper um sorriso nos lábios, que ainda lá se mantêm à hora de deitar.
gostei. E um texto com esperança :)
ResponderEliminaràs vezes vale a pena levantar de manhã !
Bonito texto...
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