domingo, 27 de dezembro de 2009

Viagem


(regresso à origem)

sábado, 26 de dezembro de 2009

Sexo - Uma pequena experiência

Vejamos qual a variação na média de visitas ao blog, a partir do post número 69, que por sinal é este.

Uma porta

Estaciono o carro em frente ao número 37. Desligo a ignição, desaperto o cinto de segurança, olho para o espelho retrovisor para confirmar que estou ali, que é real a minha presença. Abandono o lugar do condutor, e fecho a porta do carro sem fazer qualquer ruído, pois infantilmente temo acordar a noite. Atravesso a rua e dirijo-me ao portão verde.
Paro, olho para cima e vejo um vulto atrás da cortina que cobre a janela iluminada do primeiro andar. Abro o portão e começo a caminhar sobre o cascalho, em direcção à porta da casa. Sinto um olhar cravado em mim, um olhar que acompanha todos os meus movimentos, que segue todas as minhas intenções, como se não as conhecesse.
Chego à porta. Tento abri-la, mas está trancada. A porta é completamente lisa, sem maçaneta, sem fechadura. Nenhuma das chaves que trago pode ser usada. Procuro a campainha, assim como o batente Verifico que não existem.
O desespero faz-me bater na porta. Primeiro apenas com os nós dos dedos, devagar, em surdina. Depois, violentamente, com os punhos, até me magoar e magoar os ouvidos alheios, com um ruído ensurdecedor impossível de ignorar. Ninguém abre a porta.
Olho para cima. O vulto continua extático. Não se moveu um centímetro, não pestanejou, não desviou o olhar de mim.
Sinto-me cansada, prestes a desistir. Dou meia volta e dirijo-me para a saída, para o portão verde. Regresso ao carro, entro, aperto o cinto de segurança, olho pelo espelho retrovisor, para confirmar de novo a minha presença naquele local, ligo a ignição e arranco. Regresso ao meu reduto.
Não sei quantas vezes repeti estes gestos. Já perdi a conta. Todos os dias percorro o mesmo caminho. Todos os dias encontro uma porta fechada. Todos os dias espero inutilmente que a abram. Todos os dias regresso a casa sem que a porta seja aberta.
Voltarei amanhã?

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Decisões


Hoje, de tarde, decidi abrir a janela dupla do quarto e respirar o ar que circula no exterior. Olhei em redor, para verificar a estabilidade da paisagem. Escutei atentamente os sons familiares. Senti nas narinas os odores imutáveis. Tudo se mantém inalterado.
Inclinei a cabeça para trás e contemplei o céu. Peguei na máquina fotográfica e desatei a disparar contra ele. Senti uma necessidade incontrolável de o gravar, de o eternizar. Essa será a forma de me recordar. Este céu é o meu reflexo, a metáfora da minha existência. Um pedaço azul límpido, a esperança, a crença. As finas nuvens claras, a dúvida, a indecisão. As negras densas que se sobrepõe, o desânimo, o medo.
Urge que o céu seja, aliviado para que o sol brilhe, para que a terra aqueça.
Urge uma tempestade de chuva, uma tempestade de decisões.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Desesperança

Estou no cimo da escadaria.
Vejo-te a abrir caminho por entre a multidão, em direcção à saída. Olhas em frente mas não vês o que te rodeia. Vês apenas o reflexo dos teus pensamentos, das cogitações que te põe a mente em rebuliço e que te absorvem os sentidos. Vais de encontro aos corpos que se movimentam ao som da música. Derramas um copo de cerveja sobre um homem vestido de azul. Ele olha-te com um ar furioso e ameaça-te. Não reages ao olhar, não ouves a ameaça. Continuas a andar e a chocar contra todos os que se intrometem entre ti o teu objectivo.
A meio caminho da porta, levantas o olhar. Algo te cativa a atenção. Talvez uma luz mais intensa, talvez o brilho de um par de brincos, talvez um top branco debaixo de uma luz roxa. Uma expressão de espanto estampa-se no teu rosto. Cruzas os teus olhos com os meus. Demoras o olhar. Percorres-me o corpo com as pupilas. Uma expressão simultaneamente doce e felina assoma-te ao rosto. Mudas de direcção. Começas a dirigir-te a mim.
De repente, uma mulher que te seguia puxa-te o braço. Faz-te voltar à tua realidade. Voltas a recordar-te do teu destino. A falta de convicção volta a apoderar-se do teu olhar. Desvias-te de novo em direcção à porta. O desânimo toma conta dos teus membros. A mulher que te acompanha, qual manipuladora de marionetas, guia-te a vontade. Deixas de controlar os teus movimentos, a orientação dos teus passos. Vais por onde te ordenam. Antes de desapareceres, cruzas de novo o olhar com o meu. Pedes-me desculpa pela falta de coragem. Abandonas a sala para sempre. Deixas ficar a esperança a pairar.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Devagar

Devagar, muito devagarinho, em silêncio, o caminho vai sendo percorrido.
À minha frente vejo apenas o vazio frio, impessoal, desesperante.
Devagar, muito devagarinho, quase imperceptivelmente, a distância vai-se encurtando.
Consigo vislumbrar um contorno, uma silhueta, ao longe, muito longe.
Devagar, muito devagarinho vou-me aproximando.
Forma-se uma imagem nítida, focada, mas sem detalhes definidos
Devagar, muito devagarinho começo a afastar-me.
Poderá ser apenas uma miragem, uma ilusão de óptica a criar esperanças vãs.
Devagar, muito devagarinho, resolvo aproximar-me de novo, já sinto que estou a chegar.
E lá está ele à minha espera.
Devagar, muito devagarinho, chego, vou ancorar, confirmo.
O meu mundo inteiro espera-me.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Quebra-cabeças

Ela gosta muito de resolver quebra-cabeças. Charadas, sopas de letras, sudoku, ... Um destes dias, entrou-lhe pela porta adentro um enigma em forma de puzzle. Uma pequena caixa, com umas centenas de peças, com não mais que 1 cm2 de área cada. As peças eram brancas, com uns riscos pretos. Na caixa, não vinha qualquer imagem de referência para a construção do referido puzzle.
Curiosa e aventureira como é, lá começou a tentar colocar as peças em posição, para que se formasse uma imagem lógica. Tarefa hercúlea, uma vez que nenhuma delas parecia encaixar na outra. Mas ela, com uma persistência que raia a teimosia, não se deixou vencer pela dificuldade e aos poucos foi conseguindo juntar algumas peças. Descobriu então, que se tratava de uma imagem composta por frases soltas espalhadas por uma folha de papel branco. Letras e palavras manuscritas a negro, numa caligrafia simétrica, mas não infantil. Frases espalhadas em diferentes direcções. Começou por ler Quer-se. Juntou mais algumas peças e apareceu Não devia ter sido. Após dias de tentativas e erros, de troca de lugar das peças, surgiu no papel Não se quer. Começou a ficar confusa. Nada daquilo fazia sentido. As frases eram ambíguas, sem um fio condutor, incongruentes, contraditórias. No entanto, continuou na sua tarefa. Pediu ajuda a alguns amigos para entender a possível lógica subjacente. Os amigos opinaram. As opiniões foram também divergentes. Esqueceu-as. Continuou a construir. Foram aparecendo mais frases. Não. Sim. Não é possível. Intervalo. A confusão era cada vez maior. Por várias vezes apeteceu-lhe desistir. Não se achava à altura do ofício. Mas aos poucos novas letras surgiam. Talvez. Hoje. Amanhã. Não se sabe. O número de peças começava a diminuir. Sentia que a sua vida estava suspensa até à resolução total da questão. Não via um fio condutor. Pensava que tinha perdido tempo inutilmente.
Finalmente terminou a construção. As peças acabaram. Foi composta a última frase. É melhor assim. Fez-se luz na sua mente. Aquela frase era a ponta da meada que unia toda a escrita. A mensagem foi compreendida, o quebra-cabeças resolvido. Uma sensação de alívio percorreu-a. Tudo começou a fazer sentido. Já poderia continuar a viver a sua vida. Poderia, agora que tinha compreendido a mensagem, actuar em conformidade.
No entanto, reparou em algo estranho. As bordas do Puzzle tinham saliências para encaixar novas peças. Não conseguia compreender porquê, uma vez que já não existiam peças para encaixar.
Ontem compreendeu. Chegou-lhe a casa mais uma caixa de peças, e apenas uma instrução.
"O puzzle tem três dimensões. Tem a forma de um cubo".
Esperam-na mais 5 lados. Está ansiosa por recomeçar a jogar.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Desejos

É inverno. É noite. Está frio. O céu está coberto de estrelas.
Escrevo apenas com a luminosidade do écran, com o brilho das constelações.
Estou de regresso ao meu sítio, à escada do jardim que me serve de pilar. Observo o rasto de condensação que a minha respiração deixa no espaço aéreo. Um rasto de vapor de água. Um rasto de vida. Um rasto que confirma a existência, que confirma que não sou apenas mais uma personagem num sonho de alguém.
Lá dentro, o calor do aquecimento ameniza o ar, conforta a pele. Lá dentro, o calor do aquecimento entorpece os sentidos e a razão.
Cá fora, a ouvir os sons da noite, a olhar os milhares de pontos de luz que iluminam o horizonte, sou capaz de comunicar comigo, sou capaz de encadear pensamentos, sou capaz de me encontrar.
Uma estrela cadente acabou de cruzar o céu. Extingue-se em segundos. Fico absorvida pela beleza da luz que emitiu.
A superstição diz que se deve formular um desejo. Deveria ter formulado um desejo. Não o fiz. A descrença não permitiu. O meu único desejo não é realizável.

E apesar de tudo,

a terra continua a girar á volta de si própria e a terra continua a girar à volta do sol.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Sépia


(abriu-se a porta à cor)

O primeiro beijo

Ontem, encolhida no sofá, enrolada numa manta quentinha, a ouvir a chuva a cair lá fora, decidi rever o filme da minha vida. E chorar baba e ranho, como acontece cada vez que estas imagens começam a desfiar no écran. Esses momentos que passo em frente à televisão, atenta a cada gesto, a cada palavra proferidas, são para mim, uma espécie de terapia de reconstrução, de renovação da esperança.
É um filme simples, sem grandes adereços. É feito da paisagem, dos dois protagonistas e de um turbilhão de sentimentos. É feito de uma história de amor, vivida em quatro dias. É feito de esperança e desânimo. É feito de escolhas e de dilemas. É feito de eternidade.
Hoje, dei por mim a pensar numa das cenas do filme. Provavelmente não será a mais emblemática, mas é sem dúvida uma das que me faz sonhar.
É a cena do primeiro beijo. Um beijo dado numa cozinha, no meio de uma dança.
Os olhos dela cruzam-se com os dele e cerram-se, com receio do que está iminente. O coração dela bate a mil à hora. O dele está prestes a rebentar. Ela encosta a face ao seu ombro, num movimento de protecção. Encosta o seu rosto ao dele, num movimento de provocação. Aos poucos, ele consegue afasta-la de si, apenas o espaço necessário para lhe voltar a olhar os olhos. Diz-lhe uma pequena frase, que não é mais que o riscar do fósforo:
- If you want me to stop, tell me now. - (dito num tom de voz de cowboy cansado).
E as defesas dela caem por terra. E o desejo que a consumia, que consumia ambos vence. Desajeitadamente, cheia de medo de não estar à altura, a sentir-se como uma adolescente sem experiência, move a cabeça à procura dos lábios dele. Toca-os ao de leve com os seus. Afasta-se milímetros e responde-lhe:
- No one is asking you to stop. - (com um sotaque italiano e ar desafiador).
E finalmente beijam-se, devagar, sem pressas. Olham-se nos olhos. Sorriem-se. Voltam a beijar-se. E esquecem-se do mundo à volta.
Ontem não foi bem ontem. Hoje não é bem hoje. Ontem já foi há uns dias. Hoje é todos os dias.
E a memória dos primeiros beijos é eterna.

O som que acompanha a imagem

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Uma poisentia


(uma excepção)

Viagens de Avião

Toda a gente que eu conheço tem medo de andar de avião. Pronto, não será bem toda a gente, mas a maioria das pessoas que conheço evita andar de avião. E mesmo os que dizem que não têm medo, não são propriamente entusiastas dos caminhos aéreos. Eu não tenho medo nenhum de andar de avião. Aliás, adoro andar de avião. Admito que as turbulências me aceleram o batimento cardíaco. Mas isso acontece porque não gosto de ser abanada. Além disso, parece que o avião decide sempre tremer na hora da refeição, o que é meio caminho andado para a comida começar a derramar-se sobre mim. Ora, não é uma imagem muito agradável, aos olhos de quem anda por um aeroporto, ver sair do avião, uma rapariga coberta de puré de maçã, sumo de laranja ou café, entre outros. Mas abanões à parte, para mim, viajar de avião, é sempre uma aventura, uma excitação, um motivo de entusiasmo. E não consigo compreender o medo que tais viagens parecem causar à maioria dos mortais.
Para mim, a aventura começa com a viagem até ao Aeroporto. Essa é a única altura em que viajo de táxi, na minha cidade. Adoro quando me sai um carro daqueles à moda antiga, preto com o tejadilho verde. São os meus preferidos. Entro no táxi e digo a frase da ordem:
- É para o aeroporto, por favor.
Invariavelmente, o taxista é um homem com mais de 45 anos e, invariavelmente pergunta:
- A menina vai viajar?
Como a mala gigante que me acompanha parece não esclarecer essa questão, eu respondo que sim, e a viagem de cerca de 20 minutos decorre em amena cavaqueira. Fala-se do local para onde irei viajar, do trânsito, de como é difícil ser taxista, da crise... E eis que chegamos ao aeroporto. Quando avisto o aeroporto da minha cidade sinto-me como se estivesse num filme sobre o futuro. Tubos de metal encaixados entre si, entrecortados com vidro ou acrílico. Luz que vem do céu e se estende por todo o lado. Corredores amplos, muito limpos, onde circulam meia dúzia de passageiros e centenas de assistentes de terra com fardas de cores diferentes. Um arco-íris de funcionários, à disposição dos passageiros, para lhes facilitar a viagem. O aeroporto da minha cidade é muito moderno e foi recentemente premiado com o selo de melhor do mundo (categoria - aeroportos com menos de 5 milhões de passageiros). É um dos orgulhos da cidade. A verdade é que, efectivamente, é um dos melhores onde já estive, e posso dizer que já embarquei e desembarquei em alguns.
Dirijo-me, então ao balcão, faço o check-in, peso as malas, entrego o passaporte. Sim, porque eu recuso-me a viajar sem passaporte, mesmo quando vou para a UE. É um dos rituais que não dispenso. Viajar sem passaporte, não me sabe a viajar.
E depois do check-in? O café obrigatório no bar do aeroporto. Provavelmente o último café tragável, que beberei até ao meu regresso. Por muito mau que seja, é sempre melhor que qualquer café que se beba num país estrangeiro. Tem o gosto das memórias do dia-a-dia, tem o gosto do meu país.
Depois a passagem pelo controlo de passageiros, a revista, o raio-X da carteira. Gosto de imaginar as coisas que o controlador de raio-X vê, através da íris da máquina. Basta uma imagem mais escura e toca a tirar tudo para fora. É a confusão total de frascos e moedas e batons e papéis e espelhinhos... Divirto-me com tudo isto. Afinal o problema era só o porta-chaves em forma de tesoura. Reposta a ordem e os objectos na carteira, inicia-se a entrada no avião.
É nesta altura que a adrenalina começa verdadeiramente a crescer. Procuro o lugar que me está reservado e instalo-me. O capitão liga os motores, inicia a manobra de marcha-atrás e entra na pista.
Dá-se, então, o ponto alto da viagem, o pico da excitação. O acelerar dos motores, o rápido deslizar pela pista, o momento em que se perde o contacto com o chão, a subida a pique. É por este momento que espero desde que compro o bilhete de avião. A sensação é a do início de uma aventura. Um arrepio forte na espinha, uma sensação de abismo no fundo das costas. Sinto-me como uma criança que acabou de entrar num parque de diversões pela primeira vez. E mesmo após viagens e viagens, parece-me sempre a primeira vez. Adoro descolar.
E depois o decorrer da viagem. A possibilidade de observar pessoas, analisar comportamentos, descobrir os medos, inventar personagens, criar histórias. Uma diversão que é apenas interrompida pela refeição e pela turbulência. Qualquer pessoa que tenha algum interesse pelo comportamento humano, pode ter, durante uma viagem de avião, momentos riquíssimos de estudo. Quem serão aquelas pessoas? Para onde vão? O que as leva a viajar? Aquele ali está a suar por todos os poros. Parece ansioso com algo. O outro ouve música aparentando descontracção. A rapariga que viaja com o namorado está a rir-se à gargalhada, está animadíssima. O miúdo que viaja com o avô não se cala um segundo... As histórias que se poderiam escrever a bordo de um avião.
Finalmente a aterragem. O contacto dos pneus com o solo. O desembarque. O cheiro do ar de outro país ou outra cidade, que nunca é igual ao odor na hora da partida. E a eminência de repetir tudo de novo, no regresso.
E depois de tudo isto, poderá ainda haver quem sinta medo ou desassossego? Não consigo mesmo compreender.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Para o que havia de lhe dar...

- Fazemos bodas de prata!! - Dizemos ambas, quase em uníssono, cheias de orgulho e com a pretensão de fazer inveja a todos os que nos rodeiam.
Pois, é verdade, já nos conhecemos há 25 anos. E já somos amigas há 25 anos. Há idades em que não há tempo a perder, e em que as amizades se fazem em segundos. Os 10 anos são uma idade assim. E esta amizade foi feita assim, em segundos, à porta de uma sala de aulas, de uma escola que já não existe. E esta amizade manteve-se intacta por todos os segundos destes 25 anos, sem que nada a abalasse.
- O que posso escrever sobre ela? - pergunto eu aos meus botões.
Desde que a conheço, o seu coração foi sempre enorme, e parece continuar a crescer. Às vezes penso que tem que o dobrar ou amarfanhar para lhe caber no peito, de tão grande que é. A sua generosidade é do tamanho do mundo. E ao Mundo, conquista-o com um sorriso, porque o seu sorriso é capaz de iluminar os dias tristes. Faz amigos por todo o lado por onde passa. É das poucas pessoas que conheço, que tem muitos bons amigos. E nunca se cansa deles. E eles nunca se cansam dela. Não poderiam. Ela, no meio da sua constância, é sempre uma novidade.
É bonita, inteligente, culta, doce, meiga, afectuosa. E é tão lírica. A sua inocência, por vezes deixa-me louca, por não a deixar ver que a humanidade é perigosa. Mas também tenho muito orgulho nela e na coragem que tem.
É persistentemente teimosa. É distraída. Cozinha bem, apesar de todos negarem e criticarem as suas experiências científicas feitas no laboratório da cozinha. Confesso que, na maior parte das vezes, lhe correm bem e ficam deliciosas.
Adoro estar com ela e sair com ela, e fugir para casa dela e ser mimada por ela. Adoro as conversas na cozinha, de madrugada, acompanhadas de uma garrafa de vinho tinto, de pão e de queijo.
- É a minha amiga mais antiga. - Continuo eu cheia de orgulho. Temos tantas histórias em conjunto. Invariavelmente é a minha primeira confidente. A pessoa a quem revelo as mais inconsequentes loucuras em que me vejo envolvida. Sei que nunca me julga. Sei que me dá sempre apoio, mesmo quando não concorda comigo e faz questão de o deixar vincado. Porque não sabe ser desonesta, porque não sabe mentir, porque é uma das pessoas mais correctas que conheço.
É um dos meus portos de abrigo. E faz-me tanta falta. E queria tanto tê-la aqui, á distância de um passo. E não vou dizer que é a minha melhor amiga. Porque já não é isso que é. Para mim, já é irmã, a irmã que nenhuma de nós têm, e que a mim tanta falta faz.
- Para o que havia de lhe dar agora. - Continuo.
Lembrou-se de pedir, via e-mail, para escrevermos sobre ela. E quando digo pedir, estou a usar um eufemismo, porque na verdade, foi uma quase ordem, como ela escreve "uma intimação". E pediu anonimato. E eu desobedeci. E escrevi aqui. E destrui a minha identidade secreta. Depois de lerem este post, poucos serão os que nos conhecem, que não me identificarão. Mas apeteceu-me gritar ao mundo. Espalhar aos sete ventos o que ela é para mim. Não que fosse segredo. Não que haja ainda alguém que não tenha percebido. Mas porque ela pediu. E se ela precisou de pedir, eu interrogo-me:
- Será que lhe dizemos vezes suficientes? Será que lhe dizemos tudo? Será que lhe dizemos de forma a que ela compreenda?

Urgência(s)

Ela sempre fora muito ansiosa. Tinha sempre urgências. Nas filas, estava sempre à frente de tudo, de todos, e quando não estava, arranjava maneira de se pôr. Quando caminhava, quase corria, com passos firmes, que se ouviam ao longe. Quem a conhecia, quando ouvia tal ruído, já sabia que era ela quem se aproximava, e que, com ela, vinha sempre alguma bomba. Ela própria era uma bomba-relógio de vontades urgentes. Procurava o que aspirava com afinco. Expressava os seus desejos com assertividade. Por vezes, exigia com agressividade que os satisfizessem. E não aceitava um não como resposta. Nunca aceitava um não como resposta. E a verdade é que acabava sempre por ter o "sim pretendido". Todos lhe satisfaziam as vontades e os caprichos.
Um dia, conheceu alguém que não gosta de pressas. Alguém que percorre vagarosamente os caminhos da vida, ao ritmo dos tempos antigos. Alguém que a deixou confusa, por mostrar indiferença face à urgência das suas intenções. Ela tentou impor-lhe a sua vontade, quase a ferros, mas nada se alterou. O desdém, a insensibilidade do interlocutor face às suas vontades era atroz. Essa criatura só respondia se lhe apetecia, quando lhe apetecia, e ao ritmo que desejava. A confusão tinha-se instalado. Deixou-a furiosa. Quem era aquela criatura que ousava desafiar a ordem imposta? Porque não lhe obedecia?
Aos poucos, foi tentando compreender o que se passava. Reorganizou os seus pensamentos e compreendeu que não poderia continuar a fazer das corridas o caminho para a satisfação. E, então, começou a refrear-se. A impaciência que a caracterizava começou a esbater-se e a dar lugar a alguma languidez, por vezes encenada. Foi aprendendo a paciência, aos poucos e poucos. Deixou de andar a correr. Começou a andar mais lentamente, rebolando devagarinho as ancas, qual actriz de filme dos anos 30. Sem cair na invisibilidade, tornou-se menos evidente. Deixou de procurar com tanto afinco e ficou à espera de ser procurada. Por vezes, faz de conta que não vê, que aquilo por que anseia lhe passa à frente dos olhos. Mostra-se, ora distraída, ora demasiado concentrada nos seus pensamentos. Outras vezes, demora o olhar, quando passa, mostrando ao de leve o que a faz mover. Há dias em que não sorri sequer, em que exibe apenas o seu lado menos disponível. Há dias em que apenas mostra um sorriso camuflado. Há dias em que ri com gargalhadas ruidosas, para se fazer notar. Resolveu deixar a vida fluir, sem pressas, sem a ansiedade de chegar o mais cedo possível. Continua a controlar o seu destino, mas sem urgência. Os seus desejos continuam a ser satisfeitos, mas agora muito muito devagarinho.
Aprendeu que a conquista ,quando tem tempo, quando flui sem impaciência, deixa nos lábios um sabor a fruta madura, acabada de colher.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Chegada

Vens e vais e vens e vais e vens e vais,

como a maré de um oceano inquieto.