sábado, 26 de dezembro de 2009

Uma porta

Estaciono o carro em frente ao número 37. Desligo a ignição, desaperto o cinto de segurança, olho para o espelho retrovisor para confirmar que estou ali, que é real a minha presença. Abandono o lugar do condutor, e fecho a porta do carro sem fazer qualquer ruído, pois infantilmente temo acordar a noite. Atravesso a rua e dirijo-me ao portão verde.
Paro, olho para cima e vejo um vulto atrás da cortina que cobre a janela iluminada do primeiro andar. Abro o portão e começo a caminhar sobre o cascalho, em direcção à porta da casa. Sinto um olhar cravado em mim, um olhar que acompanha todos os meus movimentos, que segue todas as minhas intenções, como se não as conhecesse.
Chego à porta. Tento abri-la, mas está trancada. A porta é completamente lisa, sem maçaneta, sem fechadura. Nenhuma das chaves que trago pode ser usada. Procuro a campainha, assim como o batente Verifico que não existem.
O desespero faz-me bater na porta. Primeiro apenas com os nós dos dedos, devagar, em surdina. Depois, violentamente, com os punhos, até me magoar e magoar os ouvidos alheios, com um ruído ensurdecedor impossível de ignorar. Ninguém abre a porta.
Olho para cima. O vulto continua extático. Não se moveu um centímetro, não pestanejou, não desviou o olhar de mim.
Sinto-me cansada, prestes a desistir. Dou meia volta e dirijo-me para a saída, para o portão verde. Regresso ao carro, entro, aperto o cinto de segurança, olho pelo espelho retrovisor, para confirmar de novo a minha presença naquele local, ligo a ignição e arranco. Regresso ao meu reduto.
Não sei quantas vezes repeti estes gestos. Já perdi a conta. Todos os dias percorro o mesmo caminho. Todos os dias encontro uma porta fechada. Todos os dias espero inutilmente que a abram. Todos os dias regresso a casa sem que a porta seja aberta.
Voltarei amanhã?

1 comentário:

  1. Se o vulto não sai da janela, um dia desce ao rés-do-chão e essa porta ainda se abre.

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