quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Quem desce o Chiado, ao fundo...


Estava no Chiado, quem desce, ao fundo. Tinha acabado de pedir o almoço e aguardava que o colocassem num tabuleiro para levar para a praça da alimentação, quando sentiu o telemóvel a vibrar no bolso. Pegou-lhe de imediato e viu as iniciais do Redentor escritas no visor. Atendeu. Do outro lado ele disse-lhe as palavras mágicas. Estava a caminho. Queria vê-la. Combinaram o local do encontro. Ela pediu apressadamente que lhe embalassem o almoço e partiu desenfreada. Tinha perdido a fome no exacto momento em que o telefone vibrou. Adivinhou o que aí vinha. Deslocou-se para a estação de Metro mais próxima e dirigiu-se ao local combinado. O percurso pareceu demorar uma vida. O comboio andava vagaroso, parecendo querer contrariar-lhe a vontade de se teletransportar.
Finalmente chegou. Procurava o local de encontro, pedia coordenadas a alguém que passava, quando finalmente o viu. Estava à sua espera com o sorriso aberto de sempre.
Disse-lhe que tinha muito pouco tempo, que não poderia demorar. Convidou-a para um café rápido. O sorriso que apresentava desvaneceu-se aos poucos, dando lugar a duas rugas entre as sobrancelhas. Ela disse-lhe que o achava estranho e com um aspecto cansado. Ele confirmou o cansaço mas não a estranheza. Conversaram sobre banalidades. Ela olhou-o nos olhos. Ele fugiu sempre com o olhar. Não consegue encara-la. Teme as consequências. Daí a nada disse-lhe que devia ir embora, que não tinha mais tempo. Acompanhou-a até à entrada da estação de Metro e pediu-lhe desculpa. Abraçaram-se na despedida. Ele rapidamente desfez o abraço, para de novo a agarrar e outra vez a largar, como se o toque o queimasse. Como se o toque aumentasse a culpa. Ela sorriu e disse-lhe que ele cheirava bem. Ele ignorou o comentário dela. Viraram costas e caminharam em direcções opostas. Ela ainda olhou para trás, mas ele já tinha desaparecido.
Dirigiu-se a casa, pois já não lhe apetecia voltar ao Chiado, ou sequer ler o jornal na esplanada do Hotel como tinha projectado. Tinha trocado todos os seus planos por 10 minutos de um sonho. Entrou no comboio e sentou-se. Fez o caminho anestesiada. Chegou a casa, comeu a refeição que já tinha arrefecido entretanto e deitou-se no sofá a ler, até que adormeceu. Sonhou com um encontro de 10 minutos. Acordou. Tomou banho. Vestiu-se e voltou à rua para jantar com amigos. Só se permitiu reflectir quando se deitou na cama.   Nessa altura decidiu que não quer voltar a ver as rugas da culpa estampadas no rosto dele. Decidiu que é hora de actuar, que é hora de parar a dor que a corrói. Compreendeu que não o conseguirá com qualquer paracetamol. Não. Grandes dores exigem grandes remédios. Vai proceder a uma intervenção radical. Vai amputar o membro dorido e depois vai acalmar o corpo com morfina.

4 comentários:

  1. Ela faz muito bem. Se o conseguir fazer.

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  2. Ela não encontra outra forma de resolver a questão. Terá que conseguir, custe o que custar.

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  3. Mimi,
    Não sei se fez muito bem. A gente sempre membro amputado como se ele estivesse ali, está comprovado cientificamente.
    Repensa, Mimi!!!

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  4. Helena,
    Ela sabe que vai sentir o membro amputado, se calhar, até ao resto da sua vida, mas também sabe que ele não vai estar lá. E isso fará toda a diferença

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