quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Atrás de um dia vem outro

Saio de casa confiantemente pouco vestida para o vento que sopra agreste, mas a capa do amor próprio não me deixa sentir ponta de frio. Começo o dia segura de que sou imbatível só porque faço três coisas ao mesmo tempo. Viajo até ao Portugal que sinto profundo, mas que fica já ali, a meia hora da cidade quase grande. Transformo-me no Pai Natal que veio mais cedo e com uns fatos de trabalho e uns pares de botas faço a felicidade de vinte crianças crescidas. "Agora só falta o boné a condizer!". Prometo ver isso do boné. Dou duas ou três más notícias que roubam a alegria toda. "É a vida". Abandono o Portugal que sinto ainda mais profundo. Leio as notícias pelo caminho. Respondo ao jornal. "Não se pode assassinar o que já está morto". Volto à cidade e entrego mais uns presentes. Aqui a alegria é mais contida. A urbanidade impõe a maturidade artificial. Almoço. Tomo um comprimido para o cansaço disfarçado de enxaqueca. Bebo mais um café. Delego sem confiar.Transformo-me no padre da freguesia e dou um sermão. Não acredito em nada do que disse e portanto termino-o em quinze minutos para fugir de mim. Desmonto e monto um cronograma como se fosse uma construção de Legos. Não li as instruções. Não lhe reconheço estrutura. Vai desfazer-se não tarda nada. Penso em ti e faço-te saber. Refaço contas e percebo que fui enganada. Leio nas entrelinhas que não queres saber. São sessenta e não cinquenta. Já se desmontou. Perco horas ao telefone e nada se resolve. Bebo o terceiro café. Marco reuniões. Reformulo estratégias. Respondo ao correio. Reencaminho mensagens pela segunda e terceira vez. Olho pela janela e já é noite. É hora de regressar e ainda está metade por fazer. Penso em mim. Já passaram mais de doze horas quando entro de novo em casa. Foi o tempo necessário para sentir que me atraiçoei enquanto era traída. Sou demasiado egoísta. Perdi a fé em mim e na Humanidade. Em modo automático desço ao jardim, sem saber muito bem porquê ou para quê. A lua põe-se lá ao longe no mar. Enfeitiçada, espero que o quarto-crescente alaranjado desapareça e só depois olho em volta. Com surpresa adivinho uma tarde de trabalho. Está tudo tão bonito. Redescubro que sou excessivamente amada. Volto ao início. Está na hora de dormir. Confiantemente visto só metade do pijama. Já é quase amanhã. Não há ponta de frio que me pegue.

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