quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Saudade

Lembro-me do meu avô paterno sempre com ambas as mãos ocupadas, um Kentucky entre os dedos amarelados da mão direita e algo para ler na mão esquerda. Os olhos de alfaiate nunca o traíram, e até aos seus últimos dias não largou a leitura. O que me faz pensar que isto do gosto pelas letras é hereditário, e que foi ele, sem sombra de dúvida, que passou o gene ao meu pai, que por seu lado mo legou na primeira tranche da herança. O meu avô paterno morreu com mais de 80 anos. Não sei bem ao certo quantos. Dirão que terei sido uma neta pouco interessada, mas a verdade é que sou muito distraída e tenho péssima memória para datas, de tal forma, que já me aconteceu ter de pensar duas vezes quando me perguntam a minha data de nascimento. No último ano da sua vida, o meu avô viu a sua mobilidade drasticamente reduzida, o que lhe causou uma tristeza imensa, como já vi em muito poucas pessoas. Sentia que que a vida já ia longa e que a falta de mobilidade e as dores que a acompanhavam (que eu acredito que seriam mais na alma que no corpo) o afastavam cada vez mais de si próprio e o conduziam para um autismo espacial consciente. A longevidade e a decrepitude tiraram-lhe a alegria. Porque não tinha doença que o justificasse, continuo a acreditar que se deixou morrer, que deixou que finalmente "o levassem". Não o Senhor, a quem o ouvi pedir mais do que uma vez nos dias mais difíceis, mas a falta de alegria. Um dia esgotou-se-lhe totalmente a vivacidade e deixou-se morrer de tristeza. Sempre que vejo nas notícias que alguém que morre muito velho, numa cama de hospital, despojado de algumas das suas capacidades, vem-me à memória a melancolia do meu avô. Nessas alturas cresce em mim a vontade de que, quando a morte me visitar, eu esteja a dançar.

4 comentários:

  1. Woody Allen disse: "Na minha próxima vida quero vivê-la de trás pra frente.
    Começar morto para despachar logo esse assunto.
    Depois, acordar num lar de idosos e ir-me sentindo melhor a cada dia que passa.
    Ser expulso porque estou demasiado saudável, ir receber a aposentadoria e começar a trabalhar, recebendo logo um relógio de ouro no primeiro dia.
    Trabalhar por 40 anos, cada vez mais desenvolto e saudável, até ser jovem o suficiente para entrar na faculdade, embebedar-me diariamente e ser bastante promíscuo; e depois estar pronto para o secundário e para o primário, antes de virar criança e só brincar, sem responsabilidades.
    Aí, viro um bebê inocente até nascer.
    Por fim, passo 9 meses flutuando num spa de luxo com aquecimento central, serviço de quarto à disposição e espaço maior dia a dia,
    e depois - Voilà! - desapareço num orgasmo."

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