Apesar de algo inesperado, não me espantou grande coisa o pedido de amizade. O inesperado foi apenas o atraso com que chegou e não propriamente a chegada em si. Aceitei, sabendo que iria abrir uma porta que, em paralelo com a janela aberta em tempos idos, iria causar correntes de ar perniciosas. Ainda assim, abri-a. Tenho este hábito de dar guarida a todos quantos ma pedem. - Mau hábito! - exclamam alguns que dela já usufruíram e dela já se esqueceram. - Hábito. - afirmo eu, sabendo que sou inconfessavelmente mais vulnerável à curiosidade do que à generosidade. Abri a porta, dizia eu, sabendo de antemão que ele entraria por ali dentro, mais cedo ou mais tarde, com o intuito de reclamar o prémio que lhe saiu na lotaria num dia de verão, mas que nunca lhe foi entregue pelo cauteleiro. Não se pôs com rodeios e num português pejado de acento francófono fez saber que me quer, ainda, como me quis naquele dia. Remeti-lhe a expressão do querer para a dimensão real, justificando que sou avessa a declarações virtuais. Foi a forma que encontrei de lhe atrasar os intentos, de o inocular com o vírus da ponderação. Sei que não me quer para além da vontade de me ter. Sei que, tal como outros antes dele, deseja apenas a sensação de ego preenchido, e que eu sou a melhor nessa matéria. Sei que necessita de mim apenas para diluir a solidão que lhe ocupa os dias festivos. Sei que não lho posso dizer, não desta forma, porque apenas lhe acicataria a teimosia. Remeto, por isso, a declaração para um futuro mais ou menos longínquo, para um encontro real, avisando-o contudo, que a distância e o tempo são arqui-inimigos da fidelidade. Num golpe final e fatal de perversidade digo-lhe que vou ao cinema ver o Amour. Esqueço-me de lhe dizer que vou sozinha, que é assim que gosto de ver cinema. Esqueço-me de lhe dizer que será sozinha que permanecerei, por incapacidade de me dar, porque quero ser de ninguém, para poder ser de toda a gente.
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