domingo, 27 de maio de 2012

Conto-te como foi!

Sobrevivo, ancorada na ordem com que inundo o meu agir, e que torno mais e mais rígida com o passar dos tempos. Qual animal das profundezas marinhas que foge da luz, aninho-me na escuridão. Nas entranhas do ser mantenho activas apenas as funções vitais. Cumpro, dia após dia e escrupulosamente, o plano que tracei num passado remoto, na esperança de manter intacta a morfologia do músculo principal. Uma noite, ludibriada pela ausência da luz que o sol reflecte na lua, sou vencida pela curiosidade e ouso emergir à superfície. Convenço-me que posso escapar ao fado do sangue gelado que me corre nas veias e deixo-me transformar em anfíbio. Fecho as guelras, adquiro a posição bípede e, pelo menos para a vista, assumo uma constituição semelhante à de um mamífero terrestre, aproximada à de um ser humano. Percorro as ruas frenética,em passo de corrida, sem sentir o chão debaixo dos pés, como que a flutuar num mundo onírico. Não sei o que procuro. Não sei sequer se procuro ou se apenas vagueio. Avisto-te. Permito que te aproximes até quase me tocares. Passeio em teu redor, sem pudor, o olhar inquisitivo da indiscrição. Incito os teus dedos para que me percorram a silhueta. Necessito de descobrir, através da pele, que não és apenas a miragem que me atormenta as noites. Afasto-me e reaproximo-me pelas tuas costas. Introduzo os dedos entre os fios prateados que te cobrem a cabeça. Lentamente, mapeio-te as funções neuronais. À medida que te submetes aos meus gestos, começo a sentir o sangue que me percorre o corpo a aquecer, lentamente. O calor que me traz de volta à vida aniquila as defesas que demorei anos a fortificar. A tua entrega depriva-me de rumo, absorve-me o querer. Quebro a regra principal. Deixo-te acontecer e esqueço que as horas passam enquanto aconteces. O dia começa a clarear. A luz fere-me a íris e recorda-me que sou um animal noctívago. À pressa, recolho do chão os meus despojos e mergulho de novo rumo à escuridão. Abrando o ritmo cardíaco até ao minimo necesário à sobrevivência. Regresso ao estado habitual de hibernação.

2 comentários:

  1. Sim, mas estas vindas à superfície são lufadas para mais uns bons tempos de hibernação.

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