sábado, 25 de junho de 2011

O que os outros escrevem.

Há pessoas cuja criatividade nos vicia, pois são capazes de transformar a mais pequena parvoíce num enredo alucinante.

Está oficialmente roubado, mas com a devida permissão.

E os homens também.


Sentado na esplanada, B. vê A. caminhando com ar perdido e acena-lhe para o chamar. A. retribui o aceno com aparente dificuldade e caminha lentamente na direcção do amigo. Sem falar, puxa uma cadeira, deixa-se cair como se tivesse sido baleado naquele momento e fica aparvalhado a olhar para o horizonte, no caso a fachada em ruínas de um prédio do outro lado da rua. B. que lhe conhece os exagerados gestos teatrais a pedirem tortuosas explicações, bebe metade da imperial, agarra meia dúzia de tremoços para ir debulhando como pipocas no cinema e pergunta sem preâmbulos:
– Então, o que foi agora?
A., suspira ruidosamente recuperando vitalidade (mas pouca), estica o braço para colher uma mão cheia de sementes amarelas demolhadas em água e sal, ergue um dedo a pedir uma imperial, ergue outro a pedido de B., espera que o empregado lhe veja os dois dedos no ar e, quando isso acontece, aponta para o copo quase vazio de B.
– Ó pá... – A. interrompe-se para descascar e comer um tremoço, numa sucessão perfeita de movimentos mínimos mas absolutamente eficazes, e, depois de deglutida a semente cozida, continua com ar sofrido: – Não me digas nada... não me digas nada.
B. bebe o resto da cerveja, pensa como era bom se isso resultasse e murmura:
– Se eu não disser nada tu também não dizes?
– O quê?! Estás a rezar ou quê?
– Não. Estava a pensar numa coisa.
– Ah... Quem me dera ser assim, a poder pensar noutras coisas, a poder estar sentado como tu, despreocupadamente, numa esplanada a beber cervejas e a comer tremoços...
– Pois é... – B. mantém-se sério. – Ás vezes, as pessoas nem percebem a sorte que têm em poder estar assim, sentados, numa esplanada a beber cervejas e a comer tremoços... Aliás,...
A. concorda movendo a cabeça em câmara-lenta, com o ar cómico de quem vai desfalecer se continuar a concordar com tanto empenho.
B. olha-o, percebe que A. não o ouve e só espera que ele se cale para desfiar as suas últimas e insuperáveis tragédias, e conclui:
– Aliás, parece-me que há pessoas que mesmo quando estão sentadas numa esplanada a beber cervejas e a comer tremoços não sabem que aí estão e que, se depois lhes perguntarem, negam ou então dizem que só lá estiveram por absoluto altruísmo para acompanhar um amigo, só por isso, e só beberam uma imperial e comeram um tremoço por solidariedade e com muito esforço.
– Pois é... – A cabeça de A. continua a pender e a subir e a pender e a subir como se tivesse ganho autonomia. – Ó pá mas tu nem sabes o que me aconteceu...
– Mas vou saber.
– As gajas são todas iguais. Não há uma que se aproveite.
– Essa é que é uma grande verdade – intromete-se o empregado, que pousa as duas imperiais e, agarrando no copo vazio, declara enfático, antes de se afastar: – Leiam os meus lábios: Ne-nhu-ma! Nem uma, amigos!
B. não comenta, agarra no copo cheio e dá dois goles. A. agarra no seu copo e acompanha-o, depois, a cabeça, logo que a boca se vê livre do copo, volta por motu próprio ao anterior movimento pendular e, por fim, diz:
– É que quando querem alguma coisa de um gajo – "Mas alguém quer alguma coisa de ti?" admira-se o amigo –, não o largam, andam atrás, não descolam, e isto e aquilo, e que torna e que deixa e ronhonhó...
– E re-béu-béu pardais ao ninho...
– Pois é – anui A., pondo na boca todos os tremoços que tem na mão, sem os descascar, uns sete ou oito, que come de boca aberta ante o olhar espantado de B., e, ainda com a boca cheia e a cuspir pedaços amarelos, continua: – Depois de terem o que querem, deixam de nos ligar e um gajo que se lixe!
A. espera que B. concorde mas este, hipnotizado pelo espectáculo amarelo, branco e cor-de-rosa que se desenvolve na boca de A. e arredores, demora a perceber e só depois de um "Não achas?" sibilino e amarelecido de A., replica, sem saber do que está a falar:
– Podes crer.
Satisfeito, A. bebe o resto da sua imperial para empurrar a massa de tremoços e cascas que não tinham sido engolidas ou expelidas como projécteis e conclui:
– É que são todas. As mulheres são todas iguais!
– Mas há umas que são mais iguais do que outras – replica B.
– É, lá isso é – concorda A. imediatamente, sem ouvir, mais preocupado em ser visto pelo empregado e garantir a pronta reposição de cerveja na mesa do que com o rumo da conversa. – Queres outra? É que hoje estão a escorregar que é uma maravilha!
B. diz que sim, que quer, que sim, que estão, e sorri satisfeito, mas com uma ponta de remorso, certo da inevitabilidade de ter de ouvir o que aconteceu a A. mas seguro de que isso só acontecerá quando ele próprio já estiver alcoolicamente preparado para tal.


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