quinta-feira, 15 de março de 2012

A quatro mãos

Enquanto come um coração de chocolate de leite, olha para o ecrã e sorri. Já foi apanhada duas ou três vezes nestes propósitos, à custa desta brincadeira, o que levou a que a questionassem sobre o motivo porque estava a sorrir para o telemóvel ou para o PC. De todas as vezes, optou por ignorar o interlocutor e continua a ler, concentrada em cada palavra do pequeno texto que ele escreveu só para si. Neste momento está sozinha e pode rir-se à vontade. Apenas o gato lhe faz companhia, deitado próximo dos seus pés, a dormir com os olhos entreabertos, como que a guardá-la. E ao gato pouco importa se ela se ri ou não. Deambulando com o olhar, afasta-o do ecrã do computador e dirige-o para o copo com água onde "ele" repousa. Fecha os olhos e viaja no tempo, em reverse, até ao final da tarde do dia anterior. A imagem que forma na sua mente pára e recomeça a andar, desta vez para a frente, em câmara lenta. Vislumbra o seu ar de aborrecimento fingido quando ele lho entrega. Observa a aflição com que ele lhe tenta responder, quando o interpela e lhe comunica que não foi aquilo que pediu. Entrevê a forma como, sem perder a postura de mulher decidida, o tenta sossegar, informando de que terá que servir até que o seu desejo lhe seja concedido. Vislumbra a candura com que ele recebe o beijo que lhe deposita na face. O beijo que ele não percebe que tem por móbil a absolvição do crime que com palavras ela condenou; o beijo que é um convite velado, que se sabe jamais será aceite; o beijo que é um depósito de promessas que ela nunca poderá cumprir; o beijo que lhe marca nos lábios a textura da pele dele, que lhe aloja na memória olfactiva o seu cheiro; o beijo que poderia ser a chegada, mas que apenas lhe dá o mote para a partida... Ouve-se a mentir-lhe, a dizer-lhe que o devolverá logo que ele lhe escreva. Vê-se, a si própria, a caminhar para longe, sem rodar o pescoço para um último adeus, com os dedos médio e indicador da mão direita pousados nos lábios e a mão esquerda fechada, a apertar o pedúnculo.
Reabre os olhos e volta a olhar para o copo. Ele não sabe disso, mas ela jamais abdicaria de qualquer um dos seus girassois.

Sem comentários:

Enviar um comentário