sábado, 11 de janeiro de 2014

O silêncio e a multidão

Num acesso de rebeldia, resolvo abandonar o estado de letargia em que tenho vivido. Pego no telefone e marco o número da única amiga que amiúde me recrimina a ausência. Informo-a de que passarei em sua casa às 22:00 para bebermos um copo de vinho no sítio do costume. Dá uma gargalhada e responde-me apenas: "Até mais logo". Chego a casa já tarde, como qualquer coisa rápida e nem sequer penso em trocar os jeans e a camisola meio desbotada que usei durante o dia.  Hoje não tenho tempo para minudências. Amanhã talvez. O sítio do costume tem um vinho sofrível e o rapaz das bebidas mais giro dos arredores. Fica numa esquina e serve de poiso aos artistas underground da cidade, que transitam diretamente do teatro vizinho para a esplanada em construção. Pedimos dois copos de vinho e sentamo-nos à janela. Adivinha-se mais uma noite regada com conversa fiada e gargalhadas aos molhos. O barman mete-se connosco, mas não lhe damos trela. Hoje não permitimos intrusos. Amanhã talvez. Vejo, no meio da multidão alguém que me observa. A alguns passos de distância está um homem a fumar em silêncio. Ignora as duas acompanhantes verborreicas que o ladeiam e vai espreitando timidamente para a janela que nos emoldura. Não resisto à curiosidade e devolvo o olhar. Num segundo vislumbre reconheço-lhe as feições. Por instantes, deixo de ouvir as peripécias educativas da minha companhia e vagueio pela memória à procura de um nome para atribuir ao semblante. Não encontro. Conheço demasiadas pessoas e a idade começa a roubar-me a capacidade de as contextualizar. Regresso à conversa, certa de ter perdido dois ou três boas histórias e desisto de tentar situar aquele olhar que não nos larga, certa de que serei apelidada de malcriada, num futuro encontro. A noite faz-se já longa e a conversa amorna. Decidimos regressar a casa. Logo que entro no meu espaço, rumo à cozinha, cruzando-me pelo caminho com a estante dos livros. Um estímulo em tons de azul activa as sinapses e faz-se finalmente luz na memória cansada. O dono daquele olhar escreve livros e eu tenho uns quantos na estante para assinar. Hoje não lhe fiz a pergunta que há muito me atormenta: "Haverá cura para este permanente aparvalhar que acompanha o amor?" Amanhã talvez...

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