quarta-feira, 20 de agosto de 2014

20. before bedtime



Introduz a mão na gaveta que repousa debaixo da cama e retira os primeiros lençóis que a mão alcança. São brancos, de algodão, os únicos que o corpo aceita quando o verão se manifesta com vigor, quando o calor aperta e a cor se cola à pele suada deixando um rasto odorífero demasiado acre. No verão são sempre brancos, é ponto assente. Começa a estende-los na cama e apercebe-se que fazem parte do lote que lhe calhou em herança, há mais de 20 anos, aquando da morte dela, quando ele decidiu que tinha tralha a mais e que grande parte teria que ser despachada. Calharam-lhe em herança, sem que os tivesse pedido. Nem sequer se deu ao trabalho de participar na reunião familiar das partilhas. Qualquer coisa lhe servia. Desde que ficasse salvaguardado que a Nossa Senhora de Fátima e os pastorinhos seriam seus quando partissem ambos, tudo o resto era indiferente. Que ficassem com o que quisessem. Ninguém teve coragem de a contrariar. A Santa foi-lhe entregue poucos anos depois, quando chegou a vez dele de partir, e repousa sobre a cómoda do seu quarto, vigilante, a guardar-lhe as memórias de criança. Antes disso vieram as roupas de mesa e de cama e as joias que nunca usa. Vieram os lençóis com monograma bordado à mão, que estende na cama. Um monograma falsificado que necessitou de ser explicado quando lhe chegou às mãos. Então se o nome de ambos iniciava com a primeira letra do alfabeto, o que fazia ali um F, enleado no A? Diz-lhe a mãe, que percebe das artes da costura, que não fica bonito quando se junta a mesma letra duas vezes, que assim se distingue quem é quem, que o F é a inicial do segundo nome dele, que assim é muito mais bonito. Discorda, mas não discute. Percebe que ele não foi tido nem achado na decisão pouco democrática, já que nunca ninguém o chamou pelo segundo nome, que isto de bordar trapos é coisa de mulher, e que desde que estivessem limpos quando se deitava neles, tanto se lhe fazia se lá estava escrito AF ou caracóis com molho verde. Ou se calhar até se importava um bocadinho, às escondidas, sem que ninguém percebesse. E talvez por isso os tenha despachado à primeira oportunidade, porque já não aguentava mais ter o papel secundário na cama, na vida, nas letras tatuadas nos farrapos de tecido que ela trouxe como dote e que auguravam união para toda a vida.

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