terça-feira, 1 de julho de 2014

Eu sou, tu és, ele é...

Cresci em casa dos meus avós maternos. Até aos doze anos, mais coisa menos coisa, a casa dos meus pais era o dormitório de onde eu saia cedo, onde chegava tarde, muitas das vezes já jantada, e para onde migrava ao fim de semana, para rapidamente abandonar no início da nova semana. Até aos meus doze anos, a casa dos pais da minha mãe foi o sítio onde passei mais tempo útil e os meus avós maternos foram os maiores responsáveis tanto pela formação do meu carácter, como por grande parte das deformações da personalidade.
Da infância, uma memória ficou-me vincada. Quando morria alguém, fazia-se silêncio e não se ligava a televisão ou o rádio durante três dias. Confesso que não achava piada nenhuma à coisa. Primeiro porque eu era a fala-barato da casa e dificilmente conseguia estar calada. Depois porque nesse tempo só tínhamos direito a meia dúzia de horas diárias de televisão. Fazia lá algum sentido, só porque morreu a Dona Aninhas que morava duas casas abaixo, que ficássemos sem ver os desenhos animados durante três dias. Ainda por cima sem podermos correr ou fazer qualquer tipo de ruído. "- Nada de fazer barulho, (dizia-nos a avó em surdina) que morreu o Sr. Bernardino da quinta e parece mal andarem para aí aos gritos e em correrias." Com muitos amuos e sem se perceber muito bem porquê, lá íamos obedecendo, sempre a amaldiçoar o raio dos velhotes que parecia fazerem de propósito para morrer nos dias em que era mesmo importante assistirmos ao episódio do Babar, dos Estrumfes ou dos Flintstones. E assim andávamos crianças, pelos cantos da casa, emburrados, em encenado sossego, a aprender que a morte se vive em silêncio.
Em silencio continuo hoje, sempre que o dever ou o zelo me conduzem a algum tipo de exéquias.
Nunca aprendi a partilhar a dor em palavras. Creio que os longos e empáticos discursos dos mais loquazes, pejados de "também já passei por isto", "dói muito, mas acaba por passar", "ele está num sítio muito melhor" ou outras expressões de cemitério afins, não só não têm qualquer efeito apaziguador da dor, como são poderosíssimos no que toca a cansar os já exaustos endoados. Compreendo finalmente os meus avós. A dor do luto é idiossincrática. O silêncio será sempre a melhor forma de a honrar.

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