domingo, 9 de setembro de 2012

Já não te sei educar neste mundo.

Quando a minha filha tinha cinco anos, chegou um dia a casa, vinda da escola, muito triste. À pergunta "O que se passa?" respondeu com um choro convulsivo. Nesse dia tinha havida passeio da escola. Imaginei que num momento de distracção das professoras, algum menino lhe tivesse feito alguma  maldade e por isso chorasse. Consegui acalmá-la para que me contasse o que a preocupava. O dia tinha sido muito divertido. Tinha brincado muito com os  outros meninos, mas tinha acontecido uma coisa que a deixou muito triste. Quando a camioneta do passeio partiu, perto das 10 horas da manhã, as mães ou os pais dos outros meninos estavam lá para lhes dizer adeus e ela não tinha ninguém de quem se pudesse despedir. Tal nunca me teria passado pela cabeça. Com calma, expliquei-lhe que àquela hora eu tinha que estar a trabalhar e que não poderia faltar ao trabalho. Expliquei-lhe a importância que tinha o trabalho, quer em termos de subsistência, quer de realização pessoal, quer ainda de contributo para o desenvolvimento do país. Expliquei-lhe que os pais dos outros meninos estão desempregados e que isso é uma situação que deixa as pessoas tristes. Encontrei com ela uma solução alternativa, de me fazer representar em situações futuras pelos avós que estão reformados. Arranquei-lhe um sorriso e consegui fazer passar a mensagem, pois ouvi-a, passado algum tempo, a repetir o discurso numa conversa com as amigas. Tudo ficou bem.
Na passada sexta-feira à noite, por volta das 19:30, depois de ter emitido todos os palavrões que conheço, e eu conheço muitos palavrões e diversas combinações dos mesmos, comecei a questionar os valores do trabalho que incuti à minha filha. Fiz algumas contas. Trabalho há doze anos na mesma entidade e lido no dia-a-dia com o desemprego e com desempregados. A cada dia que passa, vejo os valores relativos ao trabalho a degradarem-se exponencialmente. Quando comecei, a maior parte das pessoas tinha vergonha por estar desempregada. Como psicóloga, era uma das minhas funções apoiá-las na aceitação da sua situação, na definição de projectos de vida e na promoção da empregabilidade. Quando comecei, chegava muitas vezes a casa arrasada com as histórias que me eram relatadas, com os sentimentos que eram expressos, com as dores emocionais de quem se sentava à minha frente. Com o passar do tempo, não sei se por mecanismos de defesa, se por desânimo apreendido, se porque sentem que é um estado instituído, a maior parte das pessoas que se sentam diante de mim já não querem saber de trabalhar, querem apenas encontrar uma forma de ganhar dinheiro fácil, se possível, sob a forma de subsídio. Poucos são os que solicitam apoio na definição ou redefinição de projectos. A minha função, hoje em dia, é a de convencer desempregados de que é importante trabalhar.
Na sexta-feira por volta das 19:30 fiz mais contas e constatei que o meu vencimento, neste momento, é menor do que era há doze anos, quando iniciei a minha actividade profissional nessa entidade, e que a curto prazo irá diminuir ainda mais. Numa leitura pessoal daquilo que foi vocalizado pelo Primeiro-Ministro, o que escutei foi que o trabalho é algo com cada vez menos valor, quer monetário, quer moral e que portanto, o proveito do mesmo pode ser retirado para fins que não se sabe muito bem quais são e que não há qualquer problema. Na sexta-feira, por volta das 19:30 compreendi porque já não se esforçam as pessoas para encontrar trabalho. Afinal, a quem nada tem, nada poderá ser tirado. Na sexta-feira por volta das 19:30 fiquei com medo de, numa outra situação similar à relatada no inicio deste post, não conseguir ser suficientemente eloquente, porque  deixei de ter vontade de continuar a trabalhar, porque já não acredito que valha a pena.

9 comentários:

  1. Texto brilhante. Fiquei perfeitamente arrepiada. "Convenvencer desempregados de que é importante trabalhar", seriously? O fim da linha é o fim da esperança. A desistência por não haver mais nada a perder. E Portugal, impávido e sereno, chegou a esse lugar nenhum, e isso rouba-me as palavras.

    Posso linkar este post no meu blogue?

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  2. Lugar nenhum. É mesmo isso AnaLu.
    Claro que pode linkar. É uma honra.

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  3. o mundo está sem bússola, a gente não sabe mais pra que lado ir, o que fazer...
    que dó :(

    beijoss

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  4. gostei imenso.

    se me permite, abraço (para a menina também :)

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  5. Helena: O desânimo invadiu aqui o cantinho. A partir de agora só pode melhorar, porque piorar já começa a ser difícil.

    Sem-se-ver: Abraço para si também (de ambas)

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  6. Amiga, tenho tanta vontade de te dizer alguma coisa e, talvez pela primeira vez, não sei o que te diga.

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  7. Su, há algumas coisas que os "senhores" não me podem tirar. Uma delas são os amigos verdadeiros. E isso já é coisa para me animar.

    Nota - a palavra senhores pode ser substituída por qualquer outra que considerem adequar-se melhor.

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  8. Ou então duas ou três palavras terminadas em ões.

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