Vida(s) Urbana(s)

domingo, 20 de agosto de 2023

Vida(s) ao avesso

 


Golpe baixo esse de voltares à vida. Não me deixas alternativa. 

Ondas de desejo

O frasco jaz inerte no fundo do roupeiro, arrumado no canto mais profundo, protegido e escondido por frascos de remédios, aparatos médicos, boiões de cremes de beleza e finalmente por outros semelhantes, muito mais modernos. Essa localização estratégica serve mais do que um propósito. Como se trata de um frasco alto e esguio, propenso a quedas, está assim protegido de qualquer acidente ou desastre. Está também protegido da visão. Só com muito esforço, e apenas em posições acrobáticas consegue vislumbrá-lo, atrás de tanta parafernália. E como se costuma dizer por cá "Longe da vista, longe do coração" ... e da mão. Mas a razão principal é outra. Ela prefere quase nunca o usar. Opta por outros mais modernos e portadores de menos memórias.

Mas naquele dia mais nenhum outro lhe pareceu adequado. Tratou de apartar tudo o que se lhe metia no caminho e sem hesitar aspergiu-se generosamente em ambos os pulsos e em cada um dos esternocleidomastóideos. Sentiu o odor a invadir-lhe as narinas e a entranhar-se no rinencéfalo. Imediatamente cerrou os olhos e uma série de imagens desorganizadas perpassaram-lhe a memória. Os pelos dos braços eriçaram-se, o coração bateu mais forte, a respiração acelerou, o baixo ventre encheu-se de borboletas. Adivinhava-se uma manha inútil para o trabalho.

Nesse estado de alheamento, saiu de casa duvidando se conseguiria cumprir o acordado. Faltavam ainda quatro horas e tinha tempo de adoecer ou sofrer um qualquer acidente incapacitante. Pensou também que poderia ficar retida em reuniões infindáveis. Pressentiu várias emergências familiares. Nada disso aconteceu. Como não sabe mentir quando chegou o sinal, pontualmente, cinco minutos adiantado, dirigiu-se ao local combinado. Quando entrou na sala onde ele se encontrava o odor que trazia consigo invadiu o espaço. Sentiu-o a aspirar profundamente, viu o assombro a crescer-lhe nos olhos, e ouviu-o dizer com o despudor que lhe é típico "Continuas a cheirar ao mesmo". 

Lançou-lhe um sorriso tímido e, de propósito, esqueceu-se de lhe contar que é mentira, que só cheira assim quando precisa de sonhar.


quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Para quê o esforço, se os outros o dizem muito, mas muito melhor

 "São como os parentes chegados de um defunto que cobrem o caixão de flores que o morto já não cheira nem contempla, ou falam com ele ou escrevem-lhe bilhetes ou cartas cientes de que já não ouve nem fica a saber. As pessoas acreditam que devem acompanhar quem já não quer nem aprecia companhia nenhuma, de maneira que são antes os vivos a consolar e a acompanhar os vivos, e consolam-se em parte - também- tratando com culpada superioridade e condescendência aliviada o falecido...."


Tomás Nevinson - Javier Marías

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

"Ironias do destino"

Involuntariamente dei o mote para o fio condutor. Acreditava que ao fim de tanto tempo já fosse "água passada". Estou equivocada. Desenrola-se, mais um pouco a cada dia, e sempre com a mesma frescura. O feitiço não se quebra. Sinto-me eterna musa, quando o primário desejo era ser vate.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Sem espinhos


Recompensam-me os anos de impaciência como o vermelho mais genuíno. Não me canso de o admirar.  O decorrer do tempo arrebatou a vulgaridade. A espera adoçou o prémio.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Luzes noturnas


No inesperado encontro a beleza incompreensível, aquela que apenas os meus olhos veem, a que me fará regressar.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Para quê o esforço se os outros o dizem bem melhor

 "Acima de tudo, há Byron. Em 1816, ansioso por matar as horas diurnas do Inverno veneziano, o poeta decidiu aprender arménio - «alguma coisa escarpada» com que pudesse exercitar o espírito; e depois de travar conhecimento com os bondosos mequitaristas, passou a ir a San Lazzaro três vezes por semana, remando o seu próprio barco, para estudar a língua arménia na biblioteca do mosteiro"

Veneza -Jan Morris, pp. 383

domingo, 13 de dezembro de 2020

Quero lá saber.


 

Esconde-se atrás da vegetação a fingir, julgando ver sem ser vista. Despreza a vigilância das seculares Cariatídes de Erecteion. Adivinha-as cópias caridosas da mármore massacrada pelos venezianos. Não lhes reconhece autoridade. A mim muito menos. Ignora as repreensões constantes e segue sem pestanejar os percursos que traçou. É um ser bravio, que só amansa depois de escurecer, quando, vencida pelo cansaço, se deita no meu colo e finge acompanhar-me a leitura noturna.

terça-feira, 17 de março de 2020

Teletrabalho - Dia 1

As gatas estão confusas. Não conseguem compreender o que fazemos por casa. Palpita-me que lhes estamos a estragar algum arranjinho. Não sei se não iremos fazer alguma descoberta perturbadora. E ainda só passou meio dia.

domingo, 6 de outubro de 2019

sábado, 19 de janeiro de 2019

domingo, 8 de abril de 2018

domingo, 30 de julho de 2017

terça-feira, 28 de março de 2017